Suplício de uma mulher
Texto-fonte:
São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Publicada originalmente Obra
Completa, Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1937.
no Rio de Janeiro, em 30/09/1865.
DRAMA EM 3 ACTOS
por
EMILE DE GERARDIN
e
ALEXANDRE DUMAS FILHO.
Traduzido por
MACHADO DE ASSIS
PERSONAGENS
HENRIQUE DUMONT — banqueiro.
JOÃO ALVAREZ — sócio de Dumont.
MATHILDE — mulher de Dumont.
JOANA — filha de Mathilde.
A SRA. LARCEY.
UM CRIADO.
Paris —1855.
ATO PRIMEIRO
Uma sala.
CENA I
DUMONT, UM CRIADO
DUMONT (entrando, ao criado). — Diga à
senhora que eu já voltei. Onde está minha filha?
CRIADO. — A menina está brincando na galeria.
DUMONT. — Diga-lhe que venha aqui.
CRIADO. — Ei-la aí. (sai).
CENA II
DUMONT, JOANA
JOANA. — Que trazes aqui, meu paizinho?
DUMONT. — Que dia é hoje?
JOANA. — Hoje é sábado.
DUMONT. — E amanhã?
JOANA. — Domingo.
DUMONT. — Mas de quem é o dia amanhã.
JOANA. — É o do meu santo.
DUMONT. — É o de todas as meninas que se
chamam Joana, e todos os que se chamam João.
JOANA. — Como meu padrinho.
DUMONT. — Pois bem! teu pai, a quem não
esquecem datas, na sua qualidade de banqueiro, lembrou-se do dia 27 de
dezembro, e foi comprar umas tetéias para a sua filha, a quem faz
respeitosamente os seus cumprimentos.
JOANA. —Hoje?
DUMONT. — Hoje.
JOANA. — De véspera?
DUMONT. — Tal qual.
JOANA. — Mas por que de véspera e não no dia?
DUMONT. — Porque é uso.
JOANA. — E por que é uso?
DUMONT. — Oh! perguntas muito! Onde iriam
parar os homens se tivessem metade da lógica das crianças.
JOANA. — Não sabes por que é?
DUMONT. — Minha filha, tu hás de achar no
mundo uma porção de usos deste gênero, cuja explicação não deves pedir, porque
ninguém ta poderá dar. Eu de mim creio que este uso foi inventado por algum pai
que tinha ânsia de presentear a filha, e a quem os outros pais imitaram.
JOANA. — É uma boneca que me trazes?
DUMONT. — Sim
JOANA. — Oh! como é bonita, papai, como é
bonita! Parece-se com a senhora Larcey. E mais bonita do que ela.
DUMONT. — Pudera! Esta não fala!
JOANA. — Deixa dar-te um beijo!
DUMONT.— Estás contente?
JOANA. — Estou, meu paizinho.
DUMONT. — Eu sou o primeiro, não?
JOANA. — Primeiro quê?
DUMONT. —Que te faz hoje um mimo.
JOANA. — É sim.
DUMONT. — Alvarez, teu padrinho, ainda não
veio?
JOANA. — Não. Que foi que deste aos meus
pobres?
DUMONT. — Toma, dá-lhes tu mesma.
JoANA. — Uma, duas, três... cinco
moedas de ouro. Então, já não terão fome.
DUMONT. — Hoje.
JOANA.— Mas amanhã?
DUMONT. — Que se há de fazer? A mesma coisa.
JOANA. — Dás-me dinheiro todos os dias para
eles?
DUMONT. —Nos dias em que não fores travessa.
JOANA. — Pois não serei travessa... Vou dar
de comer à minha boneca.
CENA III
Os MESMOS, MATHILDE
DUMONT (a Mathilde). — Vem gozar da
alegria da pequena!
JOANA (mostrando a boneca). — Olha
mamãe, como ela é bonita!
MATHILDE (um pouco fria e distraída).
— Sim, é muito bonita! A tua governanta está à tua espera.
JOANA. — Eu quero antes ficar aqui.
MATHILDE. — Bem sabes que Miss Brown não
gosta disso.
JOANA. — Porém, mamãe, o dia de meu santo é
amanhã, isto é, hoje.
DUMONT. — Ela tem razão, hoje a casa é dela.
Vai brincar! (A Mathilde) Que tens tu? Sempre preocupada!
MATHILDE. — Não tenho nada, meu amigo!
DUMONT. — Faze então como Joana: abraça-me. A
filha já teve o seu presente, a mãe também terá um.
MATHILDE. — Ainda!
DUMONT. — Por que dizes isso?
MATHILDE. — Porque me dás presentes todos os
dias... Lindas pérolas! Lindos brilhantes!... Queres, Henrique, esvaziar por
minha causa todos os joalheiros de Paris? Sabes o que se diz por aí? Não se diz
que és generoso, diz-se que és pródigo.
DUMONT. — Quem diz isso?
MATHILDE. — As minhas melhores amigas.
DUMONT. — Deixa falar as invejosas! Pois
quantas pérolas encerra o mar, e quantos diamantes cria a terra, valerão nunca
a felicidade que tu me dás? Há apenas uma nuvem na minha felicidade: é a tua
tristeza, que vai aumentando. Faço o que posso para dissipá-la, e nada obtenho.
Dize-me, o que tens Mathilde? Que te falta?
MATHILDE. —Nada, meu amigo, nada!
DUMONT. — Tens alguma queixa de mim?
MATHILDE. —Nenhuma! Fazes tudo para que eu
seja feliz... e se...
DUMONT. — E se?...
MATHILDE. — E se eu ouvisse somente o meu
coração...
DUMONT. — Que farias?
MATHILDE. — Não teria um só minuto de
tristeza, nem ainda de aborrecimento.
DUMONT. - Então porque andas triste?
MATHILDE. — Não ando triste; ando doente,
ando nervosa; tenho vontade de chorar sem motivo real.
DUMONT. — Far-te-á bem uma viagem? partamos.
MATHILDE. — Partir?
DUMONT. — Queres passar o inverno na Itália?
MATHILDE. — E os teus negócios?
DUMONT. — Não precisam de mim... Verei...
Arranjarei as coisas de modo que eles não sofram com a minha ausência... E
demais, os meus negócios não podem competir com o teu prazer ou a tua saúde. Já
te vejo sorrir; o devedor sou eu.
MATHILDE. — Como não hei de sorrir vendo
tanta bondade em ti!
DUMONT. — Tanto amor, é o que deves dizer!
Nunca te amei mais do que hoje. Tu e Joana são os dois anjos da minha vida.
MATHILDE. — Pois bem, vamos, quero ir.
DUMONT. — Quando quiseres.
MATHILDE. — Só contigo.
DUMONT. — E Joana?
MATHILDE. — Por que havemos de levar Joana?
DUMONT. — E porque havemos de deixá-la? é o
complemento da família.
MATHILDE. — Tão criança, ainda!
DUMONT. — E aborrece-te algumas vezes!
MATHILDE. - A mim? Pois acaso?...
DUMONT. — És um tanto severa com ela.
MATHILDE. — Passam-lhe tanto a mão por
cima... que é preciso alguém que a trate com menos brandura.
DUMONT. — Talvez tenhas razão. Eu só a vejo
nas horas em que não trabalho, e então acho delicioso tudo quanto ela faz.
Quando a gente gasta um dia inteiro em negócios, é um raio de sol o sorriso de
uma criança; mas tu vives sempre com ela, e eu compreendo, que te amofine às
vezes; todavia, és tão boa esposa que não podes deixar de ser boa mãe. Dar-se-á
caso que lhe queiras mal, apesar teu, pelo que ela te faz sofrer? A coitadinha,
quando nasceu pôs em risco a tua vida. É fácil os pais amar os filhos que só
lhes dão alegrias, ao passo que fazem derramar tantas lágrimas às mães... Mas é
preciso perdoar (sorrindo), sobre tudo aos inocentes. Por que choras?
MATHILDE. — Porque tu vales mais do que eu...
porque tens razão. Sou às vezes injusta com Joana. Prometo que nunca mais o
serei. Ela irá conosco. E partiremos sem o dizer a ninguém! a ninguém!
DUMONT. — Como quiseres. Mas por que este
mistério?
MATHILDE. — Para que a viagem tenha mais
atrativo, e não sobrevenham obstáculos... Passaremos dois ou três meses em um
canto do mundo, onde ninguém nos conhecerá, e então verás como me hei de fazer
prazenteira, como me tornarei a tua Mathilde de outrora!
DUMONT. — Está decidido; dá-me arras. Sorri
ainda; dize que me amas.
MATHILDE (abandonando-se). — Poderei
eu nunca amar-te bastante? (No momento
CENA IV
OS MESMOS, ALVAREZ
DUMONT. — Ah! és tu, Alvarez; estavas aí?
ALVAREZ. — Vinha entrando... procuro Joana. (A
Mathilde, que faz movimento de sair.) Sai com a minha chegada?
MATHILDE. — Não, senhor!... não!... saía
porque tenho de dar uma ordem urgente.
DUMONT. — Para o baile de Joana?
MATHILDE. — Sim. O baile deve ser às duas
horas e é quase meio-dia.
CENA V
OS MESMOS, MENOS MATHILDE
ALVAREZ. — Miss Brown disse-me que Joana
estava aqui. Onde está?
DUMONT. — No jardim de inverno... Anda tão
ocupada com a boneca nova que não te viu entrar... Como estás tu?
ALVAREZ. — Bem! e tu?
DUMONT. — Melhor do que nunca.
ALVAREZ. — E a senhora Dumont?... Está boa de
saúde?
DUMONT. — Excelente... Não preciso perguntar
o que trazes aí dentro dessa grande caixa... Aposto que é uma boneca?...
ALVAREZ. —Não aposto, porque perco. A tua
boneca fala?
DUMONT. —Não!
ALVAREZ. — Pois a minha fala.
DUMONT. — Oh! profundo corruptor!... Assistes
à festa das crianças?
ALVAREZ. — Sim.
DUMONT. — Jantas conosco?
ALVAREZ. — De certo.
DUMONT. — Bom, fica com Joana. Eu vou ver o
que há pela praça... sabes de alguma coisa?
ALVAREZ. — Se nunca me ocupo com isso... És
tu que fazes tudo, e não te sais mal... Por que me havia de intrometer?
DUMONT. — Talvez tenhas de fazei-o agora.
ALVAREZ. —. Por que?
DUMONT. — Sabê-lo-ás depois. (Sai).
CENA VI
ALVAREZ, JOANA
ALVAREZ (chamando). — Joana! Joana!
JOANA. — Ah! és tu, meu padrinho?
ALVAREZ. — Adivinha o que está aqui dentro.
JOANA. — Mais uma boneca. (Dumont entra,
sem dizer palavra, no quarto de sua mulher).
ALVAREZ. — Sim, com todas as mudas de roupa.
JOANA. — Ah! como o meu padrinho é bonito! a
tua boneca é maior que a do papai.
ALVAREZ. — Então preferes a minha à dele?
JOANA. — Oh! não. Gosto tanto como da de
papai.
ALVAREZ. — Por quê?
JOANA. — Porque foi papai que ma deu.
ALVAREZ. — Então tu amas muito ao teu papai?
JOANA. — Oh! sim!
ALVAREZ. — Mais do que a mim?
JOANA. — Pois então?
ALVAREZ. — Por que razão?
JOANA. — Pela razão de que ele é meu papai.
ALVAREZ. — Mas que quer dizer papai?
JOANA. — Não sei. Mas quando eu digo papai,
parece, que eu não posso dizer mais nada, e que e preciso abraçá-lo logo.
ALVAREZ. — E a mim, não me abraças tu?
JOANA. — Sim, eu gosto muito de ti, acredita;
mas é depois dele, e de mamãe! (Dirigindo-se à boneca) A menina tem
juízo? Há de chamar-se Fanchete.
ALVAREZ. — Que fez tua mãe ontem à noite?
JOANA. — Ficou aqui com papai!
ALVAREZ. — Não houve visitas?
JOANA. — Houve, a Sra. de Talveira.
ALVAREZ. — A que horas se foi ela embora?
JOANA. — Não sei, porque me deitaram às nove
horas.
ALVAREZ. — Olha, aqui tens mais uma tetéia!
JOANA. — Oh! o que é?
ALVAREZ. —Um leque para o baile.
JOANA. — Baile?
ALVAREZ. — Sim, um baile que eu pedi a tua
mãe que arranjasse para ti e tuas amiguinhas; é uma surpresa.
JOANA. — Um baile como o das filhas da Sra.
Talveira? Oh! que belo! Então é preciso vestir-me e enfeitar-me.
ALVAREZ. — Está claro!
JOANA. — Vou ter com Miss Brown.
ALVAREZ. — Vai, filha, vai... Joana!
JOANA. — O que é?
ALVAREZ. — Dá-me outro beijo... Hás de achar
confeitos na outra sala.
JOANA. — Vou ver. O que é que deste aos
pobres?
ALVAREZ. — Nada!
JOANA. — Pois papai deu alguma coisa.
ALVAREZ. — Eu também darei. (Enquanto
Alvarez tem Joana nos braços, a Sra. Larcey entra).
CENA VII
ALVAREZ, A SRA. LARCEY
A SRA. LARCEY. — Bom dia, meu caro Sr.
Dumont. Ah! é o Sr. Alvarez! pois olhe, tomei-o pelo dono da casa!
ALVAREZ. — Sem me ver?
A SRA. LARCEY. — Oh! a força de viver juntos
a gente acaba por se parecer uns com os outros!... É como esta menina, que se
parece tanto com o senhor como com o pai. Delicadeza de afilhada. (Dá-lhe um
beijo). Onde está tua mãe?
JOANA. — Está com papai... Vou chamá-los.
A SRA. LARCEY. — Não os incomodes. Estou aqui
como em minha casa; é a casa de uma velha amiga... velha, entenda-se, como
amizade, porque Mathilde é uma criança, como idade e também como caráter. Vou
esperar aqui, com o senhor, até que venha aquele jovem casal. Duas rolas, não é
verdade? Que belo exemplo!... e quão pouco imitado! Demais, não será a primeira
vez que o senhor faça as honras da casa. Mas que é feito? Ninguém mais o vê?
ALVAREZ. — A senhora vivia retirada.
A SRA. LARCEY. — Estava de luto, e isso era o
menos; mas o meu luto acabou hoje, graças a Deus!... Se não fora isso, não
teria eu o prazer de inaugurar com o senhor o meu primeiro vestido de cor.
Entra no baile das crianças?
ALVAREZ. — Como espectador.
A SRA. LARCEY. — Naturalmente. Também eu,
como espectadora; é mesmo hoje o baile? O convite apanhou-nos tão de supetão
que eu vinha perguntá-lo a Mathilde.
ALVAREZ. —É hoje.
A SRA. LARCEY. — Às duas horas?... Como se
tratam hoje as crianças!... Umas pequenas de 7 anos a darem bailes... Não acha
isso ridículo?
ALVAREZ. — O culpado sou eu.
A SRA. LARCEY. — Então a minha pergunta é mal
cabida, retiro-a; afinal de contas, o senhor tem razão, é preciso que as
crianças se divirtam. As mágoas chegam cedo. Desde que se falou em baile,
Adriana perdeu a cabeça... não dorme. Ela gosta tanto de se divertir! É como o
pai. Aquela não sai a mim. As meninas saem sempre aos pais. Joana saiu ao pai?
conheço-a muito pouco.
ALVAREZ. — Ela é como todas as crianças
daquela idade... Não tem caráter determinado, mas tem boa alma, afetuosa e
meiga.
A SRA. LARCEY. — Sai à mãe, o senhor gosta
muito dela? De Joana, entende-se.
ALVAREZ. — Adoro as crianças.
A SRA. LARCEY. — Ela gosta do senhor?
ALVAREZ. — Como as crianças gostam de quem
lhes faz as vontades.
A SRA. LARCEY. — Seria muito ingrata se não
gostasse do senhor.
ALVAREZ. — Por que, minha senhora?
A SRA. LARCEY. — Primeiramente, porque o
senhor lhe faz as vontades, depois...
ALVAREZ. — Depois?
A SRA. LARCEY. — Depois, porque o senhor
enche a casa de felicidade. Nunca ela há de saber quanto lhe deve.
ALVAREZ. —Não compreendo.
A SRA. LARCEY. — Pois é simplíssimo. Há oito
anos, Dumont estava apertado em seus negócios. Não é verdade? O senhor
emprestou-lhe 1.000.000 de francos... Não negue, foi ele quem mo disse,
transportado de admiração e com efusões de reconhecimento, que são o elogio
dele e o seu. Salvou-o o senhor. Continuaram os negócios, e nada lhe faltava
para ser feliz, a não ser um filho que ele pedia ao céu desde três anos de
casado, e que o céu teimava
ALVAREZ (a Dumont que entra). — Chega aqui,
meu caro Dumont; falávamos mal de ti.
CENA VIII
OS MESMOS, DUMONT
DUMONT. — De mim?
A SRA. LARCEY. — Sim, dizíamos que a senhor é
a pérola dos maridos. E depois deste cumprimento, retiro-me.
DUMONT. — À minha chegada?
A SRA. LARCEY. — Tinha apenas dez minutos
para gastar aqui; tomou-mos o Sr. Alvarez, ele que lhos restitua. Aqui vai em
duas palavras. Tenho camarote para hoje no Vaudevile, primeira ordem... Vai
comigo? Mathilde decidirá daqui a pouco quando eu voltar com Adriana. O Sr. Alvarez
está convidado; demorei-me demais, vou-me embora; até já. Não precisa
acompanhar-me. (Sai).
CENA IX
ALVAREZ, DUMONT
DUMONT. — Está doida varrida.
ALVAREZ. — Se fosse só isso, mas é má...
DUMONT. — Enganas-te. É maldizente apenas.
ALVAREZ. — Dizer mal ou fazê-lo, é quase a
mesma coisa. Acredita, a Sra. Dumont faz mal em conservar semelhante amiga.
DUMONT. — Para uma mulher moça, uma amiga tão
maldizente como a Sra. Larcey vale por dez amigas e das melhores: é um alvará de
honestidade.
ALVAREZ. — A Sra. Dumont não precisa disso.
DUMONT. — Sem duvida. Disse há pouco que
precisava falar-te. É um segredo, promete que o não contarás a ninguém, nem
serás como eu, que já estou faltando a um juramento. Mas tu és da família; e
demais, não pode ser de outro modo, porque és meu sócio.
ALVAREZ. — De que se trata?
DUMONT. — Vou fazer uma viagem.
ALVAREZ (com um movimento de alegria que reprime
logo) — Vais fazer uma viagem?
DUMONT. — A modo que te alegras com isso?
ALVAREZ. — Sim... Suponho que tens algum bom
negócio em vista.
DUMONT. — Não.
ALVAREZ. — Como! não se trata de negócios?
DUMONT. — Admiras-te?
ALVAREZ. — De certo, os negócios são a tua
vida. Vais só?
DUMONT. — Não vou só?
ALVAREZ. — Com quem vais?
DUMONT. —Com Mathilde.
ALVAREZ. — E Joana?
DUMONT. — Naturalmente. E como é preciso que
alguém trate dos negócios, na minha ausência, ficas tu incumbido disso.
ALVAREZ. — De certo! De certo!
DUMONT. — Quando eu dizia que ias ter alguma
ocupação!
ALVAREZ. — A viagem é longa?
DUMONT. — Depende de Mathilde!
ALVAREZ. — A causa da viagem?
DUMONT. — Mathilde anda doente.
ALVAREZ. — Desde quando?
DUMONT. — Há muito tempo.
ALVAREZ. — Há pouco me dizias que ela estava
perfeitamente boa.
DUMONT. — É um modo de falar.
ALVAREZ. — Foi o medico que aconselhou?
DUMONT. — Fui eu o da lembrança.
ALVAREZ. — Ela aceitou?
DUMONT. — Com alegria.
ALVAREZ. — Quando partem?
DUMONT. — Dentro de dois ou três dias.
ALVAREZ. — Onde vão?
DUMONT. — Pelo caminho que houvermos diante,
mas do lado do sol, como as andorinhas.
ALVAREZ. — E os namorados.
DUMONT (apertando-lhe as mãos com efusão). — Como os namorados, sim, não podias dizer melhor. Não tens inveja? Rico
como és, mais de quatro milhões!... moço, que o és ainda... trinta e cinco
anos... boa idade para casar? Casa-te!
ALVAREZ. — No dia do meu nome.
DUMONT. — Sim! no dia do teu nome... e para
felicidade da tua vida! (Entra Mathilde).
CENA X
ALVAREZ, DUMONT, MATHILDE
DUMONT (continuando). — Entra... Dizia
eu a João que devia casar-se; afim de ser tão feliz como nós... Havemos de
achar-lhe uma, mulher como tu!... Não é fácil, bem sei. Mas já se pode
contentar com um quase. Vamos lá, prova-lhe que deve casar-se. Eu não tenho
tempo para convencê-lo, porque daqui até o dia da partida, não posso perder um
minuto... Já lhe falei da nossa viagem... Não podia haver segredo para ele.
Adeus!
CENA XI
ALVAREZ, MATHILDE
ALVAREZ. — Então, vai viajar?
MATHILDE. —Vou.
ALVAREZ. — Foi a senhora quem teve a idéia?
MATHILDE. — Não, é desejo de Henrique.
ALVAREZ. — Não lhe pedi que não pronunciasse
esse nome de Henrique diante de mim?
MATHILDE. — É desejo de meu marido.
ALVAREZ. — Meu marido?
MATHILDE. — Na verdade, já não sei como lhe
hei de chamar!
ALVAREZ. — Chame-o como quiser. Proíbo-lhe
que vá com ele.
MATILDE. — Proíbe-me? Com que direito?
ALVAREZ. — Bem sabe com que direito.
MATHILDE. - Estou enferma, João; afirmo-lhe que
estou e preciso mudar de ares... Tenha piedade de mim.
ALVAREZ. — Hoje, como sempre, a senhora só
tem uma idéia: escapar-me, fechar-me a porta. (Trava de uma cadeira e faz um
gesto violento).
MATHILDE. — Que é isso? Se meu marido
ouvisse!
ALVAREZ. — Ouviria! tanto melhor! Seria esse
o desenlace de uma situação que não pode prolongar-se... E demais, ele não
tinha de que se queixar. Ficaria sabendo que a senhora suporta-me por medo, e
para conjurar um rompimento que iria perturbá-lo... Saberia que a senhora quer
partir porque já não me ama. Se é que alguma vez me amou.
MATHILDE. — De quem é a culpa, se eu já não o
amo?
ALVAREZ. — A culpa é de Henrique, que a
senhora ama!
MATHILDE. — Se fosse assim?
ALVAREZ (com cólera). — Senhora!
MATHILDE. — Senhor! Posso eu impedir que ele
seja bom, tanto quanto o senhor é cruel, tão nobre quanto o senhor é injusto,
tão delicado quanto o senhor é ingrato? Posso eu impedir-me de os comparar
ambos e arrepender-me? achá-lo em tudo superior ao senhor, e principalmente a
mim?
ALVAREZ. — É tarde. Devia ter feito essas
comparações há sete anos.
MATHILDE. — Ai, que se eu as tivesse feito!
ALVAREZ. — Hoje amo-a; é minha; disse que me
amava. Mentira ou verdade, firmo-me nessa declaração. Já não posso viver sem a
senhora, não quero perdê-la, e não me há de escapar, previno-a.
MATHILDE. — Que fará então?
ALVAREZ. — Ah! cuida que, se eu pus toda a
minha vida em um só amor; se durante sete anos sofri todas as torturas e
humilhações do ciúme; se ouvi minha filha, — sim, minha filha, —
dar a outro o nome de pai; se suportei tudo isso por amor da senhora e de
Joana, é para que um belo dia senhora venha dizer-me: vou viajar; e cuida que
eu a deixarei partir? Engana-se. Se não achar um meio de ficar, achá-lo-ei eu.
MATHILDE. — Que meio será?
ALVAREZ. — Saio daqui com Joana.
MATHILDE. — Está louco.
ALVAREZ. — Não. A lei não será por mim, mas
eu terei por mim o escândalo e a sua desonra. Dumont não as quererá em casa, e
então serão minhas, porque só eu lhes restarei.
MATHILDE. — Mas não há ódio que não seja
preferível a um amor semelhante! Dois adversários prestes a vir às mãos não
falariam de outro modo.
ALVAREZ. — Ah! eu não sou Genebrês... como
Henrique. Não aprendi a vida no Emílio e no Vigário saboiardo;
não amassei minha alma com a neve das geleiras; nasci
MATHILDE. — O homem a quem chama seu amigo?
ALVAREZ. — Tanto pior para ele se é cego!
MATHILDE. — Apertou-lhe a mão, socorreu-o,
salvou-lhe a fortuna e a vida!
ALVAREZ. — Era por causa da senhora, a quem
eu amava, e de quem me queria fazer amado.
MATHILDE. — É melhor dizer que eu me vendi!
ALVAREZ. — Amava-a, adorava-a. Não sei por
que meio pude convencê-la. Todos os meios são bons a quem ama. Se até hoje
tenho suportado esta vida dupla, é porque pensei que era amado, e que a senhora
suportava, como eu, uma escravidão social. Mas dês que a senhora ama aquele
homem, ele é meu inimigo, é meu rival, e matá-lo-ei se for preciso.
MATHILDE. — O crime após a vergonha, faltava
só isso. Ouça... Se o senhor cometer semelhante infâmia, considerar-me-ei tão
superior, por mais desonrada que seja, que não só deixarei de pertencer-lhe,
senão que o senhor não me verá mais. Respeite, proteja até os dias de meu
marido, porque, viúva por sua causa, e até a pesar seu, entrarei para um
convento com minha filha, e ninguém ma poderá tirar. Será unicamente minha, e
eu a defenderei contra os seus furores. Aquela inocente criança, que o senhor
converteu em espião, a quem interroga a cada instante, e que lhe dá, sem
sabê-lo, coitadinha, pretextos para torturar sua mãe, essa criança a tal ponto
ficou aos meus olhos que eu sou obrigada a corar diante dela, a temê-la, a
fugir-lhe, porque me lembra quanto sou culpada. Fala-me das suas torturas!...
acaso comparam-se às minhas? Que vida me dá o senhor?... E quantas vezes tenho
eu pensado em morrer para escapar-lhe? De há sete anos para cá, não se passa um
só dia, sem que haja uma cena como esta. O senhor desonra-me em meu marido, em
minha filha, nas minhas recordações, no meu sono! Dele por dever, — sua
por medo, — nada de mim me pertence, e o amor, amor de esposa, amor de
amante, amor de mãe, é tudo sacrilégio, mentira, ignomínia; e o senhor quer que
eu o ame!
ALVAREZ. - Ah!
MATHILDE. — Faça o que quiser; desonre,
mate... Deus louvado, resta-me a morte, que o senhor não me pode tirar.
ALVAREZ (em lágrimas e suplicante). -
Mathilde! Mathilde! perdoa-me, amo-te acima de tudo... Tu não sabes até onde
chegam os transportes de um amor aguilhoado pela humilhação de saber que não é
correspondido!... Dize-me só uma vez que me amas, que me amaste, que me amarás
sempre. Dá-me uma prova de ternura. Não partas ainda amanhã... mais tarde...
daqui a um mês, daqui a oito dias... não mo podes recusar!
MATHILDE. — Levante-se!
ALVAREZ. — Promete-me que não partirás.
MATHILDE. — Pois sim.
ALVAREZ. — Que farás?
MATHILDE. — Não sei... verei... acharei algum
meio. Mas, em nome do céu, levante-se, vá-se embora!
ALVAREZ. — Dize que me amas!
MATHILDE. — Pois, sim, sim, amo-o!
ALVAREZ. — Oh! Mathilde, como sou feliz! (Sai).
CENA XII
MATILDE (só). — Ah! meu Deus! que
suplício!
ACTO SEGUNDO
A mesma decoração
CENA I
A SRA. LARCEY, MATHILDE
A SRA. LARCEY. — Bom dia, querida; como está?
É a segunda vez que venho hoje aqui. Com que então, improvisou um baile de
crianças?
MATHILDE. — É verdade. Arranjou-se no outro
dia... uma idéia...
A SRA. LARCEY. -Uma idéia do Sr. Alvarez... foi ele
quem me disse... Dar-se-á caso que fosse indiscreto?
MATHILDE. — De modo algum... Onde está
Adriana?
A SRA. LARCEY. — Lá ficou conversando com
Joana. Sua filha agarra em todas as meninas que entram e faz-lhes uma
distribuição real de tetéias. Deu à minha filha um gato tocando bandolim. Os
vendedores destas coisas já não sabem que inventar.
MATHILDE. — Chegaram já muitas pequenas para
o baile?
A SRA. LARCEY. — Chegam todas juntas. Então
sou eu quem lhe dou conta do que se passa em sua casa!
MATHILDE. — Demorei-me... mas aqui estou
pronta para desempenhar os meus deveres de dona de casa.
A SRA. LARCEY. — Espere! O Sr. Dumont está fazendo
as suas vezes. Deixe-me algum tempo para dizer que está formosa. Quem é a sua
costureira? É a mesma Sra. Valentina?
MATHILDE. — É.
A SRA. LARCEY. —Tem gosto aquela mulher,
creio que volto a ela. Quem me veste a mim é Stokley... Veste bem... mas é um
homem, o que torna a gente acanhada. Contudo, tem muito gosto, e as rodas dos
vestidos são enormes. Só se podem comparar às contas, isto é, aos preços;
porque as contas são, ao contrario, de extrema simplicidade: um vestido cor de
rosa: 1.200 francos, um vestido branco, 1.500 francos... Faz-me lembrar os
estalajadeiros espanhóis que nunca fazem a conta pelo miúdo, mas que, quando a
gente sai, apresentam um pedacinho de papel, com esta única frase: soma tanto.
Ah! Stokley mostrou-me há pouco um vestido cinzento, que é uma maravilha.
Cuidava que eu ainda estava de luto. Perguntei-lhe por que não me mostrara
aquele vestido há um mês; respondeu-me que há um mês o vestido ainda não tinha
aparecido; chegou agora de Lyon.
MATHILDE. — Pode servir no seu próximo luto.
A SRA. LARCEY. — Deus a ouça! Tenho uma tia
por quem hei de deitar luto de boa vontade: oitocentos mil francos de herança!
Não digo isto por mim. Uma viúva não precisa de luxo. É para minha filha, a
quem devo procurar estado daqui a dez anos!
MATHILDE. — Já pensa nisso?
A SRA. LARCEY. — É preciso... Ah! como a
senhora é feliz em ter marido! é coisa que faz rir, mas ninguém sabe que falta
faz um marido. Enquanto a gente tem o seu, parece-lhe que pode passar sem ele,
e quando o perde não sabe como haver-se. E depois, que bandeira minha amiga!
como os outros navios nos dão salvas! que respeito!... e como se pode entrar
francamente nos portos estrangeiros!... Ah! mas o seu é uma pérola engastada
MATHILDE. — E por que lhe havia de importar a
opinião do mundo? Ele nada tem a temer.
A SRA. LARCEY. — Pessoalmente... nada!
MATHILDE. — Acabe.
A SRA. LARCEY. — Oh! meu Deus, pois o mundo
não murmura de todas as mulheres, as que são elegantes, e as que o não são? as
que são moças, e as que deixaram de sê-lo? Só as feias estimariam que se
falasse delas, mas ninguém lhes faz essa caridade.
MATHILDE. — Isso quer dizer que se fala de
mim. E que diz o mundo?
A SRA. LARCEY. — De positivo, nada.
MATHILDE. — Entretanto...
A SRA. LARCEY. — Vejamos, Mathilde. Há alguém
que nunca a deixa, como a sua sombra, não? Vai com a senhora a toda a parte, à
Ópera ou aos Italianos. Se a senhora está em um pequeno teatro, no fundo de um
camarote, quem é que aparece por trás do seu ombro? É o Sr. Alvarez.
MATHILDE. — O Sr. Alvarez...
A SRA. LARCEY. — Ah! minha amiga, se se
perturba, paro.
MATHILDE. — Não me perturbo.
A SRA. LARCEY. — Não... mas desconfie desses
movimentos que podem parecer comoção.
MATHILDE. — Não estou comovida, estou
espantada.
A SRA. LARCEY. — Ora, pois! Francamente, já
que comecei, acabo; o Sr. Alvarez anda muito com a senhora.
MATHILDE. — Mas se ele é sócio de meu marido.
A SRA. LARCEY. — Isso mesmo.
MATHILDE. — Leonia!
A SRA. LARCEY. — Não sou eu quem fala: repito,
nada mais. Pois é isso, o Sr. Alvarez, não é culpa sua, mas imprime nesta casa
uma mancha preta que salta aos olhos. Serei franca, o Sr. Alvarez é
comprometedor. Anda muito com a senhora. Creia-me, Mathilde, afaste-o daqui...
Bem vê, pelo tom em que me exprimo, que eu não creio nas balelas do mundo.
MATHILDE. — E faz bem.
A SRA. LARCEY. — Uma idéia! Faça com que ele
se case! Há tantas raparigas prontas a se apaixonarem por uns olhos brilhantes!
MATHILDE. — Não tenho direito algum ao Sr. Alvarez,
e não posso fazer com que ele se case, nem deixe de casar-se...
A SRA. LARCEY. — Tanto pior... porque era o
meio de dar uma resposta a tudo, é já é tempo de responder.
MATHILDE. — Explique-se claramente, faz
favor.
A SRA. LARCEY. — Pois bem, minha amiga, a
senhora tinha uma criada grave, Zoé... uma pestezinha que está pedindo o
lazareto... Foi boa de mais com ela! Viu-se, entretanto, obrigada a despedi-la.
MATHILDE. — Era atrevida.
A SRA. LARCEY. — Não nego... mas fez mal. Era
melhor fazer ouvidos de mercador aos atrevimentos dela...
MATHILDE.— Por quê?
A SRA. LARCEY. — Porque ela deu à língua.
MATHILDE. —Não compreendo.
A SRA. LARCEY. — Eis o caso: Zoé foi
apresentar-se em casa da Sra. de Berteux, inimiga íntima da senhora, e cujo
marido é tão tagarela e maldizente como a mulher. Sabe da alcunha que puseram
ao Berteux? Portaria de Convento. A Sra. Berteux tomou Zoé ao seu serviço, e
logo no dia seguinte entrou a fazer-lhe perguntas, e ela falou.
MATHILDE. — Mas Zoé não tem nada que dizer.
A SRA. LARCEY. — Mas falou... inventou, estou
certa disso. Infelizmente, inventou pormenores tão precisos, que têm ares de
verdade, para quem gosta do escândalo.
MATHILDE. — E a Sra. Berteux acreditou em
semelhante rapariga?
A SRA.LARCEY. —Qual! despediu Zoé,
dizendo-lhe que era uma infame criatura, que caluniava odiosamente a sua antiga
ama, e que nunca tomaria ao seu serviço uma tal víbora. Zoé, debulhada em
lágrimas, jurou que de tudo quanto disse podia dar provas.
MATHILDE. — Provas!
A SRA. LARCEY. —Não as tem. Foi o que eu
disse. “Saia de minha casa!” exclamou a Sra. Berteux, com aquele ar
teatral que lhe conhecemos, e entretanto anda ela simulando a indignação por
toda a parte! Berteux vai também espalhando a história de club
MATHILDE. — Aceitarei a luta com o mundo,
provarei...
A SRA. LARCEY. — Não lute, minha amiga...
Ceda, viva em paz com a maledicência, é menos perigoso do que viver em guerra
com a calúnia... Já não pensávamos no baile, e ei-lo que vem à nossa procura.
CENA II
AS MESMAS, (um bando de crianças, com Joana à
frente, entra dançando o galope, e sai por outra porta)
JOANA (vem beijar a mãe e diz-lhe baixo). — Mamãe, é uma carta para ti.
MaTHILDE. — De quem?
JOANA. — De meu padrinho, que entrou no
salão, só para me entregá-la e dizer-me: “Vai dar isto já a tua mamãe, é
uma surpresa”.
MATHILDE. — Obrigada, minha filha, vai
dançar. (Joana vai ter com as companheiras).
CENA III
MATHILDE, A SRA. LARCEY
A SRA. LARCEY (a Mathilde que se dispõe a
esconder a carta, pensando não ser vista). — Leia a sua carta, minha
amiga, leia a sua carta!
MATHILDE. — Dá licença?
A SRA. LARCEY. — Pois não! (Mathilde abre
a carta e parece perturbada). Que aconteceu?
MATHILDE — Nada!
A SRA. LARCEY. — Parece comovida.
MATHILDE. — Uma contrariedade.
A SRA. LARCEY. — Se lhe posso ser útil,
disponha de mim.
MATHILDE. — Não, obrigada. Eu preciso
escrever algumas palavras.
A SRA. LARCEY. — Escreva, escreva. Vou ver as
crianças dançar. Até já, não?
MATHILDE. - Sim, até já...
A SRA. LARCEY. — Até já.
CENA IV
MATHILDE (só, está meia desmaiada em uma
cadeira) — Que será de mim? (Lê) “A sua miserável Zoé
cumpriu o que disse. A esta hora o nosso segredo corre de boca em boca; já esta
noite não será segredo para seu marido. Mathilde, não se pode perder um minuto,
é preciso fugir! A fatalidade, que eu abençôo, vem obrigai-a a ser ainda mais
minha do que eu esperava que fosse. Esteja às 8 horas no caminho de ferro do
Norte com Joana. Não se preocupe de coisa alguma, eu previ tudo. Ah! Mathilde!
viver juntos os três! que felicidade!” (Depois de uma pausa) Que
vergonha! Desta vez, como sempre, ele só pensa em si! Amor! egoísmo do coração,
ser maldito! Que fazer? se fosse um laço para obrigar-me a acompanhá-lo? Mas
não! Esta mulher que daqui saiu não deixou duvida alguma, estou perdida. Com
que arte ela me torturava! Amizade, tu és então uma vã palavra como o amor? A
quem hei de pedir conselhos? A minha mãe, santa mulher que só conheceu o bem em
sua vida? Onde achará ela os recursos do mal? A meu pai? Ele morrerá de
vergonha ante esta confissão. Mentir então, mentir ainda; sempre mentir! Ah!
morrerei! é mais simples e mais leal! Morrer como? A minha morte, como a minha
vida, não me pertence. Posso fazer crer num desastre para salvar a minha honra,
para ser chorada pelos que me amam. Essas lágrimas serão o meu ultimo roubo.
Sim, posso montar a cavalo, e esmigalhar a cabeça contra a calçada da rua. Que
morte! Sou covarde! não serei capaz disso! Meu Deus, que será de mim? Quando me
lembra da minha infância tão calma e alegre... Ah! meus sonhos! onde estais?
Como me perdi eu? Olha a que ponto, chegaste, desgraçada! Que lodo à roda de
ti! Que procuras? Vai até o fim do teu destino; o teu amante tem razão.
Dir-se-á que não pudeste resistir ao teu amor... Invejar-te-ão outras mulheres;
cantar-te-á um poeta! Falarão de ti na grande cidade, ficarás celebre... Os
lacaios contarão a tua historia entre gargalhadas nas antecâmaras dos teus
amigos; dirão que já o sabiam, e talvez já saibam... E tu, envelhecerás lá na
Itália, heroína de romance, à borda de algum lago, eternamente entregue à tua
culpa. Pois sim! partamos! (Pára) Nunca!
CENA V
DUMONT, MATHILDE
(Ouve-se musica fora)
DUMONT (entrando). — É assim que
presides à dança dos pequenos? Felizmente Joana desempenha-se às mil
maravilhas. Toma a coisa a sério; faz morrer de riso. Adriana também é
engraçada, mas que diferença de Joana! Aqui para nós, não há menina que chegue
aos pés da nossa. Que tens tu? É verdade, a Sra. Larcey disse-me que receberas
uma carta que te contrariou muito... Que te aconteceu?
MATHILDE (olhando Dumont com olhos espantados, e
como não podendo resistir à idéia que lhe vem). — Henrique!
DUMONT. — Assustas-me! Por que me olhas
assim? Morreu tua mãe? Onde está a carta? (Mathilde dá-lhe a carta. Depois
de ler) A letra é de Alvarez! que significa isto? É a ti que esta carta é
dirigida?!
MATHILDE. — É.
DUMONT. —Mas não compreendo... Alvarez... esta
carta diz a verdade?
MATHILDE (exausta e vacilante). — Diz.
DUMONT (com explosão erguendo o braço). — Miserável!... (Pára, querendo abatê-la; afasta-se e passando a mão
pela fronte como para reter o seu pensamento). — Sinto que vou ficar
doido... perdão... Adeus!
MATHILDE (suplicante). — Henrique!
DUMONT. — Fez bem em confessar... nestes
casos é melhor dizer a verdade, mas podia esperar ainda um pouco, por
compaixão... Eu não lhe fiz nada... Deixa-se a ilusão àqueles que não têm outra
coisa mais... Mas a senhora não podia perder tempo, urgia sair, ele esperava e
espera... Mas que me quer? por que está aqui? É livre, saia! Devia sair sem me
dizer nada, era muito mais simples. E eu que nada percebi, nem suspeitei! Mas,
por que me fez esta confissão?
MATHILDE (sufocada). — Porque esperava
que o senhor me matasse, não tendo eu coragem de matar-me, a mim própria.
DUMONT. — Por que motivo quer morrer?
MATHILDE.— Porque sou a mulher mais infeliz
deste mundo.
DUMONT. — Infeliz! Em que? Ama e é amada,
deve viver.
MATHILDE. — Não o amo!
DUMONT. — Não o ama! Então que mulher é a
senhora?
MATHILDE. — Se eu lhe disser que no fundo
d'alma só tenho amado o senhor, não há de acreditar. E entretanto não tenho
outra coisa para lhe dizer, e não repito para que o acredite, mas porque é a
verdade mais verdadeira. Eis porque lhe fiz a confissão. Ordene o que quiser,
sujeito-me de antemão, contanto que eu não sofra mais este martírio, este
castigo, mais tremendo que todos quantos o senhor pudesse inventar. Quer que eu
morra para deixá-lo livre, para que possa amar outra, e dar-lhe o seu nome que
não respeitei? Eu lhe fornecerei as provas todas. Julgue-me, mate-me, faça de
mim o que quiser, eu o abençoarei qualquer que seja a minha sorte.
DUMONT. — E desde quando caiu tão baixo?
MATIIILDE. — Desde o dia em que eu acreditei
que ele o salvaria da ruína.
DUMONT. — Há sete anos!... Então, Joana? (Mathilde
abaixa a cabeça, e a esconde nas mãos sem responder) Erga-se, senhora! Nada
mais tem a dizer?
MATHILDE. — Que me ordena?
DUMONT. — Faça o que quiser, senhora; tome
sua filha, leve-a; eu não a conheço.
MATHILDE. — Adeus! (levanta-se e dá um
passo)
DUMONT. — Onde vai? Proíbo-lhe que se mate!
MATHILDE. — Por quê?
DUMONT. — Porque já há bastantes crimes no
passado, e a sua filha precisa da senhora. Não sou eu quem a educarei, e o pai
pode falhar de um instante para outro.
MATHILDE. — Vai bater-se, Henrique?
DUMONT. — Que lhe importa?
MATHILDE. — Em nome do céu, não exponha os
seus dias!
DUMONT. — Assim, durante sete anos, mentiu-me
a senhora todos os dias, a todas as horas, a todos os minutos, e eu nada vi! E
simulava ternura para mim! E não a sufoquei naqueles abraços que eu tomava por
amor!... Miserável! E via-a corar se o acaso a punha em contacto no teatro ou
no passeio com alguma mulher comprometida! E cuidava que era ela quem produzia
o seu vexame! O vexame era por si própria! A fome, a miséria são as desculpas
dessas perdidas; quais são as suas?
MATHILDE. — Não as tenho.
DUMONT. — Veja ao menos se encontra alguma!
MATHILDE. — Não quero ter nenhuma. Eu não lhe
mentia, amava-o, amo-o.
DUMONT. — Basta, senhora! Levante-se! É
inútil a comédia. Entre para os seus aposentos, e espere as minhas ordens.
MATHILDE. — Que vai fazer de mim?
DUMONT. — Não sei; vá, senhora! Enxugue os
olhos, que a não vejam os lacaios.
JOANA (entrando). — Ah! mamãe...
tenho-me divertido muito.
MATHILDE. — Vai-te, Joana, vai-te!
JOANA. — Mamãe manda-me sempre embora, mas eu
hoje tenho juízo, não é papai?
DUMONT. — Leve esta criança!
JOANA. — Que tem, papai? Por que me não dá um
beijo?
DUMONT. — Leve esta criança!
JOANA. — Papai! papai! meu papaizinho!
DUMONT (tomando Joana pelo braço e empurrando-a
para sua mãe) — Leve esta criança, já lho disse!
JOANA. —Papai machucou-me no dia de hoje, e
quando eu ia beijá-lo.
DUMONT. — Fica, Joana! Entre, senhora! (Mathilde sai vacilante)
CENA VI
DUMONT, JOANA
DUMONT (com uma comoção crescida). Vem cá,
Joana... Peço-te perdão!
JOANA (querendo beijá-lo). — Eu te
perdôo!
DUMONT (de joelhos diante delia, que está no
canapé). — E se te fiz algum mal até hoje, perdoa-me ainda, porque eu
não tinha direito.
JOANA. — Nunca me fizeste mal, papai!
DUMONT. — Não me chames teu pai!
JOANA. — Como te hei de chamar então?
DUMONT. — Chama-me teu amigo! (Não podendo
conter-se e caindo com a cabeça nos joelhos de Joana, debulhado em lágrimas) Ah! minha pobre menina, como eu sou desgraçado!
JOANA (com medo). — Mas que é? (Toma
o lenço e enxuga os olhos de Dumont). Não chore, papai, os homens não
choram: isso é bom para as meninas!
DUMONT. — Tens razão. (Toca a campainha). Vai brincar! (Ao criado) Vá à casa do Sr. Alvarez e diga-lhe que estou à
espera dele.
ACTO TERCEIRO
(A mesma decoração)
CENA I
A SRA. LARCEY, UM CRIADO
A SRA. LARCEY (consigo). — Ninguém!
Nem ela... nem ele... nem ele... nem ela. Ninguém a viu no baile... De quem se
despede a gente nesta casa quando sai? Que se terá passado? (Toca a
campainha).
É talvez aquela carta... Preciso saber o que havia
naquela carta... cheira-me a mistério. (Ao criado que entra): Onde está
Mathilde?
CRIADO. — A senhora achou-se repentinamente
indisposta. Retirou-se para o seu quarto e deu ordem de não receber pessoa
alguma.
A SRA. LARCEY. — E o Sr. Dumont?
CRIADO. — Esteve aqui há pouco com a menina.
Não saiu, porque mandou chamar o Sr. Alvarez. Ei-lo.
CENA II
DUMONT, A SRA. LARCEY
A SRA. LARCEY. — Procurava o senhor ou
Mathilde para despedir-me.
DUMONT. — Peço que desculpe a senhora Dumont,
um fato imprevisto obrigou-a a retirar-se para o quarto.
A SRA. LARCEY. — Aquela carta, sem dúvida.
DUMONT. — Sim... aquela carta.
A SRA. LARCEY. — Alguma noticia má?
DUMONT (afirmativamente). — Uma má
noticia, com efeito.
A SRA. LARCEY. — Que só lhe interessa, a ela?
DUMONT. — Que me interessa a mim, e também à
senhora...
A SRA. LARCEY. —A mim?
DUMONT. — À senhora! Foi mesmo por isso que
eu me conservei no gabinete até agora. Tinha de lhe dar alguns papéis, antes
que a senhora fosse, e era preciso pô-los em ordem.
A SRA. LARCEY. — Que papéis?
DUMONT. — A senhora é nossa amiga, não é?
A SRA. LARCEY. — Creio que está bem
convencido disso.
DUMONT. — Também nós somos seus amigos, e não
queremos arrastá-la no infortúnio que nos fere.
A SRA. LARCEY. — Explique-se.
DUMONT. — Devo-lhe com efeito uma explicação;
é o banqueiro quem lha vai dar, e que reclama de sua parte a maior discrição,
ao menos por alguns dias.
A SRA. LARCEY. — Eternamente, se for preciso.
DUMONT. — Não lhe peço tanto. A senhora sabe
que serviço me prestou em outro tempo... o meu amigo... Alvarez?
A SRA. LARCEY. — Sei.
DUMONT. — Foi por ele que eu pude
restabelecer os meus negócios.
A SRA. LARCEY. — Sei.
DUMONT. — Desde essa época... estou eu à
testa de uma das primeiras casas bancárias de Paris, depositário e
administrador de algumas grandes fortunas, entre as quais conto a sua.
A SRA. LARCEY (já inquieta). — Ou ao
menos uma parte da minha... Depois?
DUMONT. — Pois bem, a nossa sociedade
dissolveu-se e a casa vai liquidar.
A SRA. LARCEY. — Liquidar! Oh! meu Deus!
DUMONT. — Os negócios iam bem. Mas o Sr.
Alvarez precisou repentinamente dos seus fundos.
A SRA. LARCEY. — Que sobem a...?
DUMONT. — A quatro ou cinco milhões hoje.
A SRA. LARCEY. —Então?
DUMONT. — Entrego-lhos; mas para isso é
preciso fazer grandes sacrifícios... Vou vender as minhas propriedades do
Berrey, os meus quadros, a minha casa... Estou falido, em uma palavra, porque
eu não contava com esta reclamação.
A SRA. LARCEY. — Não havia contrato de
sociedade, ou não estará ele em regra?
DUMONT. — O contrato estava em regra, porque
o caso foi previsto. Cada qual ficava com a sua liberdade. Éramos mais amigos
do que sócios.
A SRA. LARCEY (mais inquieta). — E os
seus credores?
DUMONT. — Descanse, não perdem um ceitil. A
sua conta foi a primeira que eu tirei... Aqui está um saque sobre o banco, com
o qual, pode receber a quantia que lhe cabe.
A SRA. LARCEY (respirando). — Recebo
tudo? Ah! o senhor é um homem honrado!
DUMONT. — Nunca duvidei disso, mas nem por
isso deixa de alegrar-me a sua confirmação.
A SRA. LARCEY. — E a que atribui a repentina
necessidade de dinheiro que tem o Sr. Alvarez?
DUMONT. — A uma necessidade de dinheiro.
A SRA. LARCEY. — Mas ele podia fazer a
reclamação por outros termos.
DUMONT. — Não os empregou para obsequiar-me.
É um homem de primeiros movimentos. É preciso aceitá-lo como ele é.
A SRA. LARCEY. — E o senhor não lhe fica
querendo mal?
DUMONT. — Eu não quero mal a ninguém.
A SRA. LARCEY. — Mas ele sabe que o arruína?
DUMONT. — Deve supô-lo.
A SRA. LARCEY. — E que diz Mathilde?
DUMONT. — Resigna-se... Foi a ela que Alvarez
encarregou desta comunicação... inesperada. Esse era o conteúdo daquela carta
que a perturbou tanto.
A SRA. LARCEY. — Senhor Dumont!
DUMONT. — Minha senhora!
A SRA. LARCEY. — Sua mulher é um anjo!
Perdoe-me o senhor, e ela também...
DUMONT. — O quê?
A SRA. LARCEY. — Quase a caluniei.
DUMONT. — A senhora!
A SRA. LARCEY. — No meu pensamento...
DUMONT. —Como?
A SRA. LARCEY. — O senhor sabe... a gente nem
sempre resiste aos maus pensamentos... e é mau isso, mas a minha franqueza lhe
provará como deploro os que eu tive, e tudo quanto eu faria para combatê-los,
se outrem os tivesse.
DUMONT. — Peço-lhe que se explique.
A SRA. LARCEY. — Mathilde podia impedir a sua
ruína. É verdade que seria à custa de sua honra: o Sr. Alvarez ama-a.
DUMONT. — Acredita?
A SRA. LARCEY. — Estou certa, e foi para
vingar-se da resistência dela que ele fez o que fez. Vingança de lacaio.
DUMONT. — Oh! não... seria demasiado horrível
e indigno de um cavalheiro!
A SRA. LARCEY. — Era visível esse amor.
Falava-se, e até já se começava a acusar Mathilde... Vim hoje adverti-la
disso... mas agora é preciso calar. Há gente que eu conheço, sem falar no casal
Berteux, que vai ficar desesperada, mas estou contente por causa de Mathilde.
DUMONT. — Obrigado, minha senhora, pelas suas
boas palavras... Com efeito, Mathilde é a minha consolação neste desastre que a
fere também, e que ela quer compartir até o fim... Há de lhe custar, a ela, que
está afeita desde a infância ao luxo e a todos os gozos da vida; mas, no caso
mesmo em que lhe faltasse a coragem e ela voltasse para a casa dos pais, como
já lhe lembrei, nem assim lhe ficarei querendo mal. A lembrança da felicidade
que lhe devo no passado basta-me no futuro.
A SRA. LARCEY. — Posso abraçá-la antes de
sair?
DUMONT (sorrindo). — Pois não! (Ao
criado). Diga à senhora que venha aqui.
A SRA. LARCEY. — Aquele Alvarez é um
miserável; deixarei de cumprimentá-lo a primeira vez que o vir, e proibirei aos
meus amigos que lhe falem...
DUMONT. — Ele está no seu direito.
A SRA. LARCEY. — Conte com a minha eterna
amizade... Coragem, Sr. Dumont, coragem!
DUMONT. — Tê-la-ei.
A SRA. LARCEY (olhando para o papel que Dumont
lhe deu). — Então, é um saque à vista?
DUMONT. — À vista...
A SRA. LARCEY. — Eu própria posso ir cobrar o
dinheiro?
DUMONT. — Agora mesmo...
A SRA. LARCEY. — Vou passar pelo Banco antes
de entrar em casa...
DUMONT. — É isso...
A SRA. LARCEY. — Está aberto até às 4 horas?
DUMONT. — Está... (Entra Mathilde).
A SRA. LARCEY (indo a ela). — Pobre
amiguinha... (Abraça-a) Queria abraçá-la ainda uma vez... Perdoe-me tudo
o que lhe disse, a senhora não tem melhor amiga do que eu... Há de ter a prova,
porque havemos de nos encontrar muitas vezes... Eu não sou daquelas que fogem
ao infortúnio... Coragem! e até breve!
CRIADO (anunciando). — Está aí o Sr.
Alvarez.
A SRA. LARCEY. — Adeus!... Não quero vê-lo. (Consigo). Três horas e meia... mas há tempo de sobra... (Sai por outra porta).
DUMONT. — Pode entrar, o Sr. Alvarez.
CENA III
DUMONT, ALVAREZ, MATHILDE
MATHILDE (a Dumont). — Que devo fazer?
DUMONT. — Fique...
ALVAREZ. — Estou às tuas ordens, Henrique,
que queres de mim?
DUMONT. — Dois homens na situação em que nos
achamos em face um do outro só podem impedir que essa situação caia no ridículo
ou na ignomínia, falando com franqueza.
ALVAREZ. — Que situação?
DUMONT. — Faltei alguma vez aos deveres de
amizade?
ALVAREZ. — Nunca.
DUMONT. — E contudo tu traíste essa
amizade... e pelo crime mais odioso... pelo mais covarde...
ALVAREZ. — Henrique!
DUMONT. — Há sete anos que o senhor é amante
de minha mulher!
ALVAREZ. —Senhor!!
DUMONT. — Eis a sua carta.
ALVAREZ. — O senhor interceptou-a?
DUMONT. — Foi a minha senhora que ma
entregou.
ALVAREZ. — Ela!
DUMONT. — Ela, e de mão própria.
ALVAREZ. — Teve semelhante audácia?
DUMONT. — Confiança, deve dizer.
ALVAREZ. — Por que confiança?
DUMONT. — Porque não o ama; porque nunca o
amou... e prefere a minha justiça, a minha cólera mesmo... ao seu amor... É
verdade, senhora?
MATHILDE. — É verdade.
ALVAREZ. — É tudo quanto tem para dizer-me?
DUMONT. — Não. Há sete anos!... Compreende
que, sem que eu saiba, dou ao mundo o indigno espetáculo de um marido ridículo
pelo excesso de sua confiança, talvez mesmo o de um marido infame pela
aparência de sua cumplicidade... e sobretudo depois do serviço que o senhor me
fez, porque eu fui obsequiado pelo senhor.
ALVAREZ. — Mas...
DUMONT. — E quero ficá-lo sendo.
ALVAREZ. — A que quer chegar?
DUMONT. — Quero pedir-lhe um conselho.
ALVAREZ. — Um conselho, a mim? Não está
falando seriamente?
DUMONT. — Como não falaria a sério, numa situação
tão séria? Pensa que no espaço de duas horas não tive tempo de refletir? E a
reflexão vai depressa em certos momentos. Sei o que faço, porque, graças a
Deus, o meu espírito é são, e a minha alma forte... É uma boa coisa aprender a
vida na escola de pais honestos... Interrogo-o, pois, — é esse o menor
dos meus direitos! — e pergunto-lhe: se eu lhe tivesse prestado outrora
um favor assinalado; se, depois de tê-lo prestado, tornasse-me seu sócio e
amigo íntimo, se depois lhe roubasse a mulher, e se tivesse dela uma filha,
que, sendo minha, passasse por sua, que faria o senhor? Responda!
MATHILDE (de joelhos). — Meu Deus! Meu
Deus!
ALVAREZ. — Há situações em que só se tomam
conselhos de si próprio, e da própria dignidade.
DUMONT. — Responda, senhor!
ALVAREZ. — Não me compete a mim dizer-lhe o
que deve fazer.
DUMONT. — Então posso interpretar o seu
silêncio?
ALVAREZ. — Interprete-o.
DUMONT. — No meu lugar, tratar-me-ia de
miserável, de infame, talvez mesmo me esbofeteasse... afim de tornar inevitável
o duelo que ordinariamente deve resultar de uma situação como esta, entre dois
homens como nós.
ALVAREZ. — Talvez! (Mathilde ouve com
terror).
DUMONT. — Eu não admitirei quatro testemunhas
na confidencia de um fato que só deve ser conhecido dos culpados e do juiz... E
demais, se eu não o matasse onde estaria a reparação?... Se o senhor me matasse
onde estaria a justiça.
ALVAREZ. — Então?
DUMONT. — Interroguei a lei, e pedi-lhe
alguns meios que ela me oferecia... Posso matá-los, a ela e ao senhor... Posso
fazer prender minha mulher, e infamá-la publicamente. Posso separar-me dela...
amigavelmente, como se diz... Mas seja o que for, desonra para ela, ridículo
para mim, vergonha para a criança que não pode ser solidária do crime de vós
ambos... A lei é cruel... podia prever melhor... Resta-me o direito de perdoar.
Ai! bem o quisera, mas eu sou apenas um homem, e não tenho forças para isso,
apesar do desejo que teria de mostrar-me superior a ambos. Por mais cega que
fosse essa paixão, é impossível que não corassem nem sofressem com o mal que
fizeram... mal incalculável, irreparável, — porque rouba-me o passado, o
presente e o futuro.. rouba-me o amor da mulher, as esperanças da filha, e até
a amizade do senhor... Todo o meu coração se resumia nos três!
ALVAREZ (comovido). — Senhor! ... (Mathilde
chora em silencio e ajoelhada).
DUMONT. — E depois, há o mundo a quem eu
tinha de dar uma explicação... A Sra. Larcey, que o representa aos meus olhos
com todas as suas frivolidades, injustiças, motejos... e direitos, já sabe o
que deve dizer, e o mundo dirá o que ela disser, porque eis aqui o que eu exijo
de ambos. O Sr. Alvarez me reclamará bruscamente esta tarde, por via legal, os
capitais que tem em minha casa... de maneira que me arruíne, para que lhos
entregue no prazo que marcar.
ALVAREZ. — Pede-me uma infâmia.
DUMONT. — Está no caso de recusar alguma?
ALVAREZ. — Mas...
DUMONT. — E acredita o senhor que eu possa
guardar agora um ceitil da fortuna que adquiri com o seu dinheiro? Exijo que se
submeta a esta condição... Quero ficar arruinado, e arruinado pelo senhor.
ALVAREZ. — E se eu recusar?
DUMONT. — Sabe que nunca faltei à minha
palavra... e se recusarem fazer aquilo que eu tenho o direito de impor-lhes,
dou-lhes a minha palavra de honra que ao sair daqui... dou um tiro na cabeça, e
deixarei uma carta junto ao meu testamento, por onde se verá a verdadeira razão
da minha morte...
ALVAREZ. — Desonra-me por outro modo, eis
tudo...
DUMONT (dispondo-se). — Escolha.
ALVAREZ. — Obedeço.
DUMONT. — Está bem. As suas contas estão
feitas, dentro de uma hora o meu caixa se entenderá com o senhor. Quanto à
senhora... (Pára um momento).
MATHILDE. — Meu Deus, que vai ele fazer?
DUMONT. — Quanto à senhora, irá viver com
seus pais... depois de me reclamar o seu dote, escrevendo-me uma carta em que
me há de dizer que não tem coragem de suportar a miséria ...
MATHILDE. — Mas é impossível... seria esse o
meu perdão....
DUMONT. — Não quero perdoar... e entre os
castigos que eu podia impor-lhes, escolhi o mais infamante. Condeno-os à
ingratidão.
MATHILDE (timidamente). — E minha
filha?
DUMONT (sorrindo). — Sua filha? (Ao
criado que entra). Mande cá a menina. (Sai o criado) Como de nós
três, sou eu o único que pode fazer dela uma mulher honesta, guardo-a comigo,
e, como não tenho mais nada, trabalharei para educá-la agora, e para casá-la
mais tarde. Na prosperidade o trabalho é ainda um dever... na desgraça, é um
refúgio!
JOANA. — Aqui estou.
DUMONT. — Vem cá, Joana! Tua mãe é rica, teu
padrinho é rico, eu estou pobre. Sabes o que é ser pobre?
JOANA. — Oh! sei, papai!
DUMONT. — Com qual de nós queres tu viver?
JOANA. — Com papai.
DUMONT. — Tua mãe é obrigada a partir, queres
ficar comigo ou ir com ela?
JOANA. — Quero ficar contigo!
DUMONT. - Vai abraçar tua mãe! (Joanna vai a sua
mãe, depois de abraçá-la e beijá-la, faz um movimento para ir a Alvarez.
Mathilde a retém e com o braço impele-a para Dumont. Alvarez sai desesperado). E agora, senhora, pode ir para casa de sua mãe! (Mathilde sai abatida. — A Joana, tomando-a nos braços). Gostas então de mim?
JOANA. — Oh! sim, papai... mas eu tornarei a
ver mamãe?
DUMONT (olhando para a porta por onde saiu
Mathilde). — Talvez!
FIM