Poesias dispersas

 


 

Textos-fonte:

 

Obra Completa, Machado de Assis, vol. III,

Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

 

Toda poesia de Machado de Assis. Org. de Cláudio Murilo Leal.

Rio de Janeiro: Editora Record, 2008.

 

 

 

 

ÍNDICE

 

A PALMEIRA

 

ELA

 

TEU CANTO

 

UM ANJO

 

MINHA MUSA

 

COGNAC!...

 

MINHA MÃE

 

O SOFÁ

 

VAI-TE

 

ÁLVARES D'AZEVEDO

 

REFLEXO

 

A MORTE NO CALVÁRIO

 

UMA FLOR? — UMA LÁGRIMA

 

CONDÃO

 

A AUGUSTA

 

SONETO CIRCULAR

 

ÍCARO

 

CORAÇÃO PERDIDO

 

FASCINAÇÃO

 

O CASAMENTO DO DIABO

 

HINO PATRIÓTICO

 

A CÓLERA DO IMPÉRIO

 

DAQUI DESTE ÂMBITO ESTREITO

 

A FRANCISCO PINHEIRO GUIMARÃES

 

À MEMÓRIA DO ATOR TASSO

 

NO ÁLBUM DO SR. QUINTELA

 

VERSOS

 

SONETO

 

NAQUELE ETERNO AZUL, ONDE COEMA

 

DAI À OBRA DE MARTA UM POUCO DE MARIA

 

RELÍQUIA ÍNTIMA

 

A DERRADEIRA INJÚRIA

 

REFUS

 

ENTRA CANTANDO, ENTRA CANTANDO, APOLO!

 

A GUIOMAR

 

PRÓLOGO DO INTERMEZZO

 

A CAROLINA

 

SONETO

 

A FRANCISCA

 

À ILMA. SRA. D. P. J. A.

 

A SAUDADE

 

JÚLIA

 

MEU ANJO

 

UM SORRISO

 

PARÓDIA

 

A SAUDADE

 

NO ÁLBUM DO SR. F. G. BRAGA

 

A UMA MENINA

 

O GÊNIO ADORMECIDO

 

O PROFETA

 

O PÃO D’AÇÚCAR

 

SONETO A S. M. O IMPERADOR, O SENHOR D. PEDRO II

 

À MADAME ARSÈNE CHARTON DEMEUR

 

O MEU VIVER

 

DORMIR NO CAMPO

 

CONSUMMATUM EST!

 

SAUDADES

 

LÁGRIMAS

 

NÃO?

 

RESIGNAÇÃO

 

AMANHÃ

 

A***

 

DEUS EM TI

 

ESTA NOITE

 

VEM!

 

ESPERANÇA

 

A MISSÃO DO POETA

 

O PROGRESSO

 

À ITÁLIA

 

A UM POETA

 

A PARTIDA

 

A REDENÇÃO

 

S. HELENA

 

NUNCA MAIS

 

A CH. F. FILHO DE UM PROSCRITO

 

OFÉLIA

 

A ESTRELA DA TARDE

 

A UM PROSCRITO

 

SONHOS

 

UM NOME

 

TRAVESSA

 

À D. GABRIELA DA CUNHA

 

MEUS VERSOS

 

À MME. DE LA GRANGE

 

SOUVENIRS D’EXIL

 

A S. M. I.

 

AO CARNAVAL DE 1860

 

NO ÁLBUM DA ARTISTA LUDONIVA MOUTINHO

 

GABRIELA DA CUNHA

 

ESTÂNCIAS NUPCIAIS

 

EM HOMENAGEM À D. ISABEL E AO CONDE D’EU

 

NO CASAMENTO DA PRINCESA ISABEL

 

CALA-TE, AMOR DE MÃE

 

TRISTEZA

 

O PRIMEIRO BEIJO

 

A F. X. NOVAIS

 

ONTEM, HOJE, AMANHÃ

 

26 DE OUTUBRO

 

AS NÁUFRAGAS

 

AO DR. XAVIER DA SILVEIRA

 

13 DE MAIO

 

SONETO

 

RICARDO

 

VELHO TEMA

 

POR ORA SOU PEQUENINA

 

CÉSAR! FULGE MAIS LUZ

 

NÃO HÁ PENSAMENTO RARO

 

VIVA O DIA 11 DE JUNHO

 

VOULEZ-VOUS DU FRANÇAIS?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A PALMEIRA [1]

 

RJ, 6 jan. 1855

O.D.C.

 

A FRANCISCO GONÇALVES BRAGA

 

Como é linda e verdejante

Esta palmeira gigante

Que se eleva sobre o monte!

Como seus galhos frondosos

S’elevam tão majestosos

Quase a tocar no horizonte!

 

Ó palmeira, eu te saúdo,

Ó tronco valente e mudo,

Da natureza expressão!

Aqui te venho ofertar

Triste canto, que soltar

Vai meu triste coração.

 

Sim, bem triste, que pendida

Tenho a fronte amortecida,

Do pesar acabrunhada!

Sofro os rigores da sorte,

Das desgraças a mais forte

Nesta vida amargurada!

 

Como tu amas a terra

Que tua raiz encerra,

Com profunda discrição;

Também amei da donzela

Sua imagem meiga e bela,

Que alentava o coração.

 

Como ao brilho purpurino

Do crepúsc’lo matutino

Da manhã o doce albor;

Também amei com loucura

Ess’alma toda ternura

Dei-lhe todo o meu amor!

 

Amei!... mas negra traição

Perverteu o coração

Dessa imagem da candura!

Sofri então dor cruel,

Sorvi da desgraça o fel,

Sorvi tragos d’amargura!

 

........................................

Adeus, palmeira! ao cantor

Guarda o segredo de amor;

Sim, cala os segredos meus!

Não reveles o meu canto,

Esconde em ti o meu pranto

Adeus, ó palmeira!... adeus!

 

 

 

ELA [2]

 

Nunca vi, — não sei se existe

Uma deidade tão bela,

Que tenha uns olhos brilhantes

Como são os olhos dela!

 

F. G. BRAGA

 

Seus olhos que brilham tanto,

Que prendem tão doce encanto,

Que prendem um casto amor

Onde com rara beleza,

Se esmerou a natureza

Com meiguice e com primor.

 

Suas faces purpurinas

De rubras cores divinas

De mago brilho e condão;

Meigas faces que harmonia

Inspira em doce poesia

Ao meu terno coração!

 

Sua boca meiga e breve,

Onde um sorriso de leve

Com doçura se desliza,

Ornando purpúrea cor,

Celestes lábios de amor

Que com neve se harmoniza.

 

Com sua boca mimosa

Solta voz harmoniosa

Que inspira ardente paixão,

Dos lábios de Querubim

Eu quisera ouvir um — sim —

Pr’a alívio do coração!

 

Vem, ó anjo de candura,

Fazer a dita, a ventura

De minh’alma, sem vigor;

Donzela, vem dar-lhe alento,

Faz-lhe gozar teu portento,

“Dá-lhe um suspiro de amor!”

 

 

 

TEU CANTO [3]

 

29 jun. 1855

 

A UMA ITALIANA

 

É sempre nos teus cantos sonorosos

Que eu bebo inspiração.

 

DO AUTOR [“Meu Anjo”.]

 

Tu és tão sublime

Qual rosa entre as flores

De odores

Suaves;

Teu canto é sonoro

Que excede ao encanto

Do canto

Das aves.

 

Eu sinto nest’alma,

Num meigo transporte,

Meu forte

Dulçor;

Se soltas teu canto

Que o peito me abala,

Que fala

De amor.

 

Se soltas as vozes

Que podem à calma,

Minh’alma

Volver;

Minh’alma se enleva

Num gozo expansivo

De vivo

Prazer.

 

Donzela, esta vida

Se eu tanto pudera,

Quisera

Te dar;

Se um beijo eu pudesse

Ardente e fugace

Na face

Pousar.

 

 

 

UM ANJO [4]

 

RJ, out. 1855

 

À MEMÓRIA DE MINHA IRMÃ

 

Se deixou da vida o porto

Teve outra vida nos céus.

 

A. E. ZALUAR

 

Foste a rosa desfolhada

Na urna da eternidade,

Pr’a sorrir mais animada,

Mais bela, mais perfumada

Lá na etérea imensidade.

 

Rasgaste o manto da vida,

E anjo subiste ao céu

Como a flor enlanguecida

Que o vento pô-la caída

E pouco a pouco morreu!

 

Tu’alma foi um perfume

Erguido ao sólio divino;

Levada ao celeste cume

C’os Anjos oraste ao Nume

Nas harmonias dum hino.

 

Alheia ao mundo devasso,

Passaste a vida sorrindo;

Derribou-te, ó ave, um braço,

Mas abrindo asas no espaço

Ao céu voaste, anjo lindo.

 

Esse invólucro mundano

Trocaste por outro véu;

Deste negro pego insano

Não sofreste o menor dano

Que tu’alma era do Céu.

 

Foste a rosa desfolhada

Na urna da eternidade

Pr’a sorrir mais animada

Mais bela, mais perfumada

Lá na etérea imensidade.

 

 

 

MINHA MUSA [5]

 

RJ, 22 fev. 1856

 

A Musa, que inspira meus tímidos cantos,

É doce e risonha, se amor lhe sorri;

É grave e saudosa, se brotam-lhe os prantos.

Saudades carpindo, que sinto por ti.

 

A Musa, que inspira-me os versos nascidos

De mágoas que sinto no peito a pungir,

Sufoca-me os tristes e longos gemidos,

Que as dores que oculto me fazem trair.

 

A Musa, que inspira-me os cantos de prece,

Que nascem-me d’alma, que envio ao Senhor.

Desperta-me a crença, que às vezes ‘dormece

Ao último arranco de esp’ranças de amor.

 

A Musa, que o ramo das glórias enlaça,

Da terra gigante — meu berço infantil,

De afetos um nome na idéia me traça,

Que o eco no peito repete: — Brasil!

 

A Musa, que inspira meus cantos é livre,

Detesta os preceitos da vil opressão,

O ardor, a coragem do herói lá do Tibre,

Na lira engrandece, dizendo: — Catão!

 

O aroma de esp’rança, que n’alma recende,

É ela que aspira, no cálix da flor;

É ela que o estro na fronte me acende,

A Musa que inspira meus versos de amor!

 

 

 

COGNAC!... [6]

 

Vem, meu Cognac, meu licor d’amores!...

É longo o sono teu dentro do frasco;

Do teu ardor a inspiração brotando

O cérebro incendeia!...

 

Da vida a insipidez gostoso adoças;

Mais val um trago teu que mil grandezas;

Suave distração — da vida esmalte,

Quem há que te não ame?

 

Tomado com o café em fresca tarde

Derramas tanto ardor pelas entranhas,

Que o já provecto renascer-lhe sente

Da mocidade o fogo!

 

Cognac! — inspirador de ledos sonhos,

Excitante licor — de amor ardente!

Uma tua garrafa e o Dom Quixote,

É passatempo amável!

 

Que poeta que sou com teu auxílio!

Somente um trago teu m’inspira um verso;

O copo cheio o mais sonoro canto;

Todo o frasco um poema!

 

 

 

MINHA MÃE [7]

 

(Imitação de Cowper)

 

Quanto eu, pobre de mim! quanto eu quisera

Viver feliz com minha mãe também!

 

C. A. DE SÁ

 

Quem foi que o berço me embalou da infância

Entre as doçuras que do empíreo vêm?

E nos beijos de célica fragrância

Velou meu puro sono? Minha mãe!

Se devo ter no peito uma lembrança

É dela que os meus sonhos de criança

Dourou: — é minha mãe!

 

Quem foi que no entoar canções mimosas

Cheia de um terno amor — anjo do bem

Minha fronte infantil — encheu de rosas

De mimosos sorrisos? — Minha mãe!

Se dentro do meu peito macilento

O fogo da saudade me arde lento

É dela: minha mãe.

 

Qual anjo que as mãos me uniu outrora

E as rezas me ensinou que da alma vêm?

E a imagem me mostrou que o mundo adora,

E ensinou a adorá-la? — Minha mãe!

Não devemos nós crer num puro riso

Desse anjo gentil do paraíso

Que chama-se uma mãe?

 

Por ela rezarei eternamente

Que ela reza por mim no céu também;

Nas santas rezas do meu peito ardente

Repetirei um nome: — minha mãe!

Se devem louros ter meus cantos d’alma

Oh! do porvir eu trocaria a palma

        Para ter minha mãe!

 

 

 

O SOFÁ [8]

 

Oh! Como é suave os olhos

Sentir de gozo cerrar,

Sobre um sofá reclinado

Lindos sonhos a sonhar,

Sentindo de uns lábios d’anjo

Um medroso murmurar!

 

Um sofá! Mais belo símbolo

Da preguiça outro não há...

Ai, que belas entrevistas

Não se dão sobre um sofá,

E que de beijos ardentes

Muita boca aí não dá!

 

Um sofá! Estas violetas

Murchas, secas como estão

Sobre o seu sofá mimoso,

Cheirosas, vivas então,

Achei um dia perdidas,

Perdidas: por que razão!

 

Talvez ardente entrevista

Toda paixão, toda amor

Fizesse ali esquecê-las...

Quem não sabe? sem vigor

Estas flores só recordam

Um passado encantador!

 

Um sofá! Ameno sítio

Para colher um troféu,

Para cingir duas frontes

De amor num místico véu,

E entre beijos vaporosos

Da terra fazer um céu!

 

Um sofá! Mais belo símbolo

Da preguiça outro não há...

Ai, que belas entrevistas

Não se dão sobre um sofá,

E que de beijos ardentes

Muita boca aí não dá!

 

 

 

VAI-TE [9]

 

1º jan. 1858

 

Por que voltaste? Esquecidos

Meus sonhos, e meus amores

Frios, pálidos morreram

Em meu peito. Aquelas flores

Da grinalda da ventura

Tão de lágrimas regada,

Nesta fronte apaixonada

Cingida por tua mão,

Secaram, mortas estão.

Pobre pálida grinalda!

Faltou-lhe um orvalho eterno

De teu belo coração.

Foi de curta duração

Teu amor: não compreendeste

Quanto amor esta alma tinha...

Vai, leviana andorinha,

A outro clima, outro céu:

Meu coração? Já morreu

Para ti e teus amores,

E não pode amar-te — vai!

O hino das minhas dores

Dir-to-á a brisa, à noite,

Num terno, saudoso — ai —

Vai-te — e possa a asa do vento

Que pelas selvas murmura,

Da grinalda da ventura

Que em mim outrora cingiste,

Inda um perfume levar-te,

Morta assim: como um remorso

Do teu olvido... eu amar-te?

Não, não posso; esquece, parte;

Eu não posso amar-te... vai!

 

 

 

ÁLVARES D'AZEVEDO [10]

 

AO SR. DR. M. A. D'ALMEIDA

 

Vejo em fúnebre cipreste

Transformada a ovante palma!

 

PORTO ALEGRE.

 

Morrer, de vida transbordando ainda,

Como uma flor que ardente calma abrasa!

Águia sublime das canções eternas:

Quem no teu vôo espedaçou-te a asa?

 

Quem nessa fronte que animava o gênio,

A rosa desfolhou da vida tua?

Onde o teu vulto gigantesco? Apenas

Resta uma ossada solitária e nua!

 

E contudo essa vida era abundante!

E as esperanças e ilusões tão belas!

E no porvir te preparava a pátria

Da glória as palmas e gentis capelas!

 

Sim, um sol de fecunda inteligência

Sobre essa fronte pálida brilhava,

Que à face deste século de indústria

Tantos raios ardentes derramava!

 

E pôde a morte destruir-te a vida!

E dar à tumba a tua fronte ardente!

Pobre moço! saudaste a estrela d’alva,

E o sol não viste a refulgir no Oriente!

 

Morrer, de vida transbordando ainda,

Como uma flor que ardente calma abrasa!

Águia sublime das canções eternas:

Quem no teu vôo espedaçou-te a asa?

 

Voltaste à terra só — Não morrem Byrons,

Nem finda o homem na friez da campa!

Homem, tua alma aos pés de Deus fulgura,

Teu nome, poeta, no porvir se estampa!

 

Não morreste! estalou a fibra apenas

Que a alma à vida de ilusões prendia!

Acordaste de um negro pesadelo,

E saudaste o sol do eterno dia!

 

Mas cá fica no altar do pensamento

Teu nome como um ídolo pomposo,

Que a fama com o turíbulo dos tempos

Perfuma de um incenso vaporoso!

 

E ao ramalhete das brasílias glórias,

Mais uma flor angélica se enlaça,

Que a brisa ardente do porvir passando

Trêmula beija e a murmurar abraça!

 

Byron da nossa terra, dorme embora

Envolto no teu fúnebre sudário,

Murmure embora o vento dos sepulcros

Junto do teu sombrio santuário.

 

Resta-te a c’roa santa de poeta,

E a mirra ardente da oração saudosa,

E pelas noites calmas do silêncio

Os séculos da lua vaporosa!

 

Ela te chora, e ali com ela a pátria,

Pobre órfã de teus cânticos divinos,

E das brisas na voz misteriosa,

Da saudade e da dor sagram-te os hinos!

 

Dorme junto de Chatterton, de Byron,

Frontes sublimes, pra sonhar criadas,

Almas puras de amor e sentimento,

Harpas santas, por anjos afinadas!

 

Dorme na tua fria sepultura

Guarda essa fronte vaporosa, ardente,

Tu, que apenas saudaste a estrela-d'alva

E o sol não viste a refulgir no Oriente!

 

 

 

REFLEXO [11]

 

Olha: vem sobre os olhos

Tua imagem contemplar,

Como as madonas do céu

Vão refletir-se no mar

Pelas noites de verão

Ao transparente luar!

 

Olha e crê que a mesma imagem

Com mais ardente expressão

Como as madonas no mar

Pelas noites de verão,

Vão refletir-se bem fundo,

Bem fundo — no coração!

 

 

 

A MORTE NO CALVÁRIO [12]

 

Semana Santa, 1858

 

AO MEU AMIGO O PADRE SILVEIRA SARMENTO

 

Consummatum est!

 

I

 

Ei-lo, vai sobre o alto Calvário

Morrer piedoso e calmo em uma cruz!

Povos! naquele fúnebre sudário

Envolto vai um sol de eterna luz!

 

Ali toda descansa a humanidade;

É o seu salvador, o seu Moisés!

Aquela cruz é o sol da liberdade

Ante o qual são iguais povos e reis!

 

Povos, olhai! — As fachas mortuárias

São-lhe os louros, as palmas, e os troféus!

Povos, olhai! — As púrpuras cesáreas

Valem acaso em face do Homem-Deus?

 

Vede! mana-lhe o sangue das feridas

Como o preço da nossa redenção.

Ide banhar os braços parricidas

Nas águas desse fúnebre Jordão!

 

Ei-lo, vai sobre o alto do Calvário

Morrer piedoso e calmo em uma cruz!

Povos! naquele fúnebre sudário

Envolto vai um sol de eterna luz!

 

II

 

Era o dia tremendo do holocausto...

Deviam triunfar os fariseus...

A cidade acordou toda no fausto,

E à face das nações matava um Deus!

 

Palpitante, em frenético delírio

A turba lá passou: vai imolar!

Vai sagrar uma palma de martírio,

E é a fronte do Gólgota o altar!

 

Em derredor a humanidade atenta

Aguarda o sacrifício do Homem-Deus!

Era o íris no meio da tormenta

O martírio do filho dos Hebreus!

 

Eis o monte, o altar do sacrifício,

Onde vai operar-se a redenção.

Sobe a turba entoando um epinício

E caminha com ela o novo Adão!

 

E vai como ia outrora às sinagogas

As leis pregar do Sião e do Tabor!

É que no seu sudário as alvas togas

Vão cortar os tribunos do Senhor!

 

Planta-se a cruz. O Cristo está pendente;

Cingem-lhe a fronte espinhos bem mortais;

E cospe-lhe na face a turba ardente,

E ressoam aplausos triunfais!

 

Ressoam como em Roma a populaça

Aplaudindo o esforçado gladiador!

É que são no delírio a mesma raça,

A mesma geração tão sem pudor!

 

Ressoam como um cântico maldito

Pelas trevas do século a vibrar!

Mas as douradas leis de um novo rito

Vão ali no Calvário começar!

 

Sim, é a hora. A humanidade espera

Entre as trevas da morte e a eterna luz;

Não é a redenção uma quimera,

Ei-la simbolizada nessa cruz!

 

É a hora. Esgotou-se a amarga taça;

Tudo está consumado; ele morreu,

E aos cânticos da ardente populaça

Em luto a natureza se envolveu!

 

Povos! realizou-se a liberdade,

E toda consumou-se a redenção!

Curvai-vos ante o sol da Cristandade

E as plantas osculai do novo Adão!

 

Ide, ao som das sagradas melodias,

Orar junto do Cristo como irmãos,

Que os espinhos da fronte do Messias

São as rosas da fronte dos cristãos!

 

 

 

UMA FLOR? — UMA LÁGRIMA [13]

 

Out. 1858

 

— Por que há de a musa que coroam rosas

Da rocha inculta só rebentam cardos:

Lágrima fria de pisados olhos

Não cabe em chão de pérolas.

 

— Por que há de a musa que coroam rosas

Vir debruçar-se no ervaçal inculto,

E pedir um perfume à flor da noite

Que o vento enregelara?

 

Minha musa é a virgem das florestas

Sentada à sombra da palmeira antiga;

Cantando, e só — por uma noite amarga

Uma canção de lágrimas...

 

A aura noturna perpassou-lhe as tranças,

A mão do inverno enregelou-lhe os seios,

Roçou-lhe as asas na carreira ardente

O anjo das tempestades.

 

Por que há de a musa que coroam rosas

Pedir-lhe um canto? O alaúde é belo

Quando amestrada mão lhe roça as cordas

Num canto onipotente.

 

Pede-se acaso à ave que rasteja

Rasgado vôo? ao espinhal perfumes?

Risos da madrugada ao céu da noite

Sem luar nem estrelas?

 

Pedem-se as rosas aos jardins da vida;

Da rocha inculta só rebentam cardos;

Lágrima fria de pisados olhos

Não cabe em chão de pérolas.

 

 

 

CONDÃO [14]

 

C'est que j'ai recontré des regards dont la flamme

Semble avec mes regards ou briller ou mourir.

 

E. DESCHAMPS

 

Uns olhos me enfeitiçaram,

Uns olhos... foram os teus.

Falaram tanto de amores

Embebidos sobre os meus!

 

Eram anjos que dormiam

Dessas pálpebras à flor

Nas convulsões palpitantes

Dos alvos sonhos de amor.

 

Foi à noite... hora das fadas;

Bem lhes sentira o condão;

Mas refletiam tão puras

Os sonhos do coração!

 

Como ao sol do meio-dia

Dorme a onda à flor do mar,

Eu dormi, — pobre insensato,

Ao fogo do teu olhar...

 

Pobre, doida mariposa,

Perdi-me... — pecados meus!

Na chama que me atraía,

No fogo dos olhos teus.

 

Venci protestos de outrora,

Moirei no teu alcorão,

E vim purgar nesses olhos

Pecados do coração.

 

Pois bem hajam os teus olhos,

Onde um tal condão achei:

Doido inseto em torno à chama,

Todo aí me queimarei.

 

 

 

A AUGUSTA [15]

 

1859

 

Em teu caminho tropeçaste — agora!

Cala esse pranto, minha pobre flor.

Caída mesmo — tropeçando embora,

Conserva a alma um último pudor.

 

Deve ser grande esse martírio lento...

Já nos espinhos a minha alma pus;

Sou como um Cireneu do sofrimento;

Deixa-me ao menos carregar-te a cruz.

 

Eu sei medir as lágrimas vertidas

Na sombra e só sem uma mão sequer!

Vês tu as minhas pálpebras doridas?

Têm chorado talvez por ti, mulher!

 

É fraqueza chorar? chorei contigo;

Que a mesma nos banhou de luz

Como em mim um pesar profundo e antigo

No falar dessa fronte se traduz!

 

Sei como custa desfolhar um riso

Em face às turbas, que o senti por mim,

Ver o inferno e falar do paraíso,

Sentir os golpes e abraçar Caim!

 

Chorei, que prantos! Prometeu atado

Ao rochedo da vida e sem porvir!

Poeta neste século infamado

Que mata as almas e condena a rir.

 

Cansei, perdi aquela fé robusta

Que como a ti, nos sonhos me sorriu;

Na identidade do calvário, Augusta,

Bem vês como o destino nos mentiu!

 

Ergue-te pois! A redenção agora

Dá-te mais viço, minha pobre flor!

Se tropeçaste no caminho embora!

Na tua queda é-te bordão — o amor!

 

 

 

SONETO CIRCULAR [16]

 

16 abr. 1895

 

A bela dama ruiva e descansada,

De olhos longos, macios e perdidos,

C'um dos dedos calçados e compridos

Marca a recente página fechada.

 

Cuidei que, assim pensando, assim colada

Da fina tela aos flóridos tecidos,

Totalmente calados os sentidos,

Nada diria, totalmente nada.

 

Mas, eis da tela se despega e anda,

E diz-me: — “Horácio, Heitor Cibrão, Miranda,

C. Pinto, X. Silveira, F. Araújo,

 

Mandam-me aqui para viver contigo.”

Ó bela dama, a ordens tais não fujo.

Que bons amigos são! Fica comigo.

 

 

 

ÍCARO [17]

 

1859

 

Que queres tu que eu te peça?

Um olhar que não consola?

Podes guardar essa esmola

Para quem ta for pedir,

A um olhar de volúpia

Que ensina discreto espelho

Queres que eu curve o joelho,

E quebre todo um porvir?

 

É audaz o pensamento.

Não vês que um olhar é pouco?

Eu fora cobarde e louco

Se te aceitasse um olhar!

A flor da pálida face,

Esse raio luminoso,

É a esperança de um gozo

Que bem se pode evitar.

 

Este fogo que me impele

Para a esfera dos desejos

Cresce, vigora nos beijos

De uma boca de mulher;

Tem asas como as das águias;

Nem pousa sobre o granito;

Aspira para o infinito;

Pede tudo e tudo quer!

 

É ambição desmedida?

Prevejo tal pensamento:

A inclinação de um momento

Não me dá direito a mais.

A chama ainda indecisa

Uma hora alimentaste,

E agora que recuaste

Quebras os laços fatais.

 

Era tarde! As fibras todas

Já vão meio consumidas;

Perdi na vida — mil vidas

Que é preciso resgatar.

Bem vês que a perda foi grande.

Quero um preço equivalente;

Guarda o teu olhar ardente

Que não me paga um olhar.

 

Alma de fogo encerrada

Em livre, em audaz cabeça

Não pode crer na promessa

Que os olhos, que os olhos dão!

Talvez levada de orgulho

Com este amor insensato

Quer a verdade do fato

Para dá-la ao coração.

 

E sabes o que eu te dera?

Nem tu calculas o preço...

Olha bem se te mereço

Mais que um só olhar dos teus:

Dera-te todo um futuro

Quebrado a teus pés, quebrado,

Como um mundo derrocado

Caído das mãos de Deus!

 

Era uma troca por troca,

Ambos perdiam no abraço

Mas estreitava-se o espaço

Que nos separa talvez.

Foras um sonho que eu tive,

Uma esperança bem pura;

Foras meu céu de ventura

Em toda a sua nudez!

 

Que este fogo que me impele

Para a esfera dos desejos

Cresce, vigora nos beijos

De uma boca de mulher;

Tem asas como as das águias;

Nem pousa sobre o granito;

Aspira para o infinito,

Pede tudo e tudo quer!

 

 

 

CORAÇÃO PERDIDO [18]

 

Buscas debalde o meigo passarinho

Que te fugiu;

Como quer que isso foi, o coitadinho

No brando ninho

Já não dormiu.

 

O coitado abafava na gaiola,

Faltava-lhe o ar;

Como foge um menino de uma escola,

O mariola

Deitou-se a andar.

 

Demais, o pobrezito nem sustento

Podia ter;

Nesse triste e cruel recolhimento

O simples vento

Não é viver.

 

Não te arrepeles. Dá de mão ao pranto;

Isso que tem?

Eu sei que ele fazia o teu encanto;

Mas chorar tanto

Não te convém.

 

Nem vás agora armar ao bandoleiro

Um alçapão;

Passarinho que sendo prisioneiro

Fugiu matreiro

Não volta, não!

 

 

 

FASCINAÇÃO [19]

 

Tes lèvres, sans parler, me disaient: — Que je t'aime!

Et ma bouche muette ajoutait: — Je te crois!

 

Mme. DESBORDES-VALMORE

 

A vez primeira que te ouvi dos lábios

Uma singela e doce confissão,

E que travadas nossas mãos, eu pude

Ouvir bater teu casto coração,

 

Menos senti do que senti na hora

Em que, humilde — curvado ao teu poder,

Minha ventura e minha desventura

Pude, senhora, nos teus olhos ler.

 

Então, como por vínculo secreto,

Tanto no teu amor me confundi,

Que um sono puro me tomou da vida

E ao teu olhar, senhora, adormeci.

 

É que os olhos, melhor que os lábios, falam

Verbo sem som, à alma que é de luz

— Ante a fraqueza da palavra humana —

O que há de mais divino o olhar traduz.

 

Por ti, nessa união íntima e santa,

Como a um toque de graça do Senhor,

Ergui minh'alma que dormiu nas trevas,

E me sagrei na luz do teu amor.

 

Quando a tua voz puríssima — dos lábios,

De teus lábios já trêmulos correu,

Foi alcançar-me o espírito encantado

Que abrindo as asas demandara o céu.

 

De tanta embriaguez, de tanto sonho

Que nos resta? Que vida nos ficou?

Uma triste e vivíssima saudade...

Essa ao menos o tempo a não levou.

 

Mas, se é certo que a baça mão da morte

A outra vida melhor nos levará,

Em Deus, minh'alma adormeceu contigo,

Em Deus, contigo um dia acordará.

 

 

 

O CASAMENTO DO DIABO [20]

 

(Imitação do alemão)

 

Satã teve um dia a idéia

De casar. Que original!

Queria mulher não feia,

Virgem corpo, alma leal.

 

Toma um conselho de amigo,

Não te cases, Belzebu;

Que a mulher, com ser humana

É mais fina do que tu.

 

Resolvido no projeto,

Para vê-lo realizar,

Quis procurar objeto

Próprio do seu paladar.

 

Toma um conselho de amigo,

Não te cases, Belzebu;

Que a mulher, com ser humana.

É mais fina do que tu.

 

Cortou unhas, cortou rabo,

Cortou as pontas, e após

Saiu o nosso diabo

Como o herói dos heróis.

 

Toma um conselho de amigo,

Não te cases, Belzebu;

Que a mulher, com ser humana

É mais fina do que tu.

 

Casar era a sua dita;

Correu por terra e por mar,

Encontrou mulher bonita

E tratou de a requestar.

 

Toma um conselho de amigo,

Não te cases, Belzebu;

Que a mulher, com ser humana

É mais fina do que tu.

 

Ele quis, ela queria,

Puseram mão sobre mão,

E na melhor harmonia

Verificou-se a união.

 

Toma um conselho de amigo,

Não te cases, Belzebu;

Que a mulher, com ser humana

É mais fina do que tu.

 

Passou-se um ano, e ao diabo,

Não lhe cresceram por fim,

Nem as unhas, nem o rabo...

Mas as pontas, essas sim.

 

Toma um conselho de amigo,

Não te cases, Belzebu;

Que a mulher, com ser humana

É mais fina do que tu.

 

 

 

HINO PATRIÓTICO [21]

 

Brasileiros! haja um brado

Nesta terra do Brasil:

Antes a morte de honrado

Do que a vida infame e vil!

 

O leopardo aventureiro,

Garra curva, olhar feroz,

Busca o solo brasileiro,

Ruge e investe contra nós.

 

Brasileiros! haja um brado

Nesta terra do Brasil:

Antes a morte de honrado

Do que a vida infame e vil!

 

Quer estranho despotismo

Lançar-nos duro grilhão;

Será o sangue o batismo

Da nossa jovem nação.

 

Brasileiros! haja um brado

Nesta terra do Brasil:

Antes a morte de honrado

Do que a vida infame e vil!

 

Pela liberdade ufana,

Ufana pela honradez,

Esta terra americana,

Bretão, não te beija os pés.

 

Brasileiros! haja um brado

Nesta terra do Brasil:

Antes a morte de honrado

Do que a vida infame e vil!

 

Nação livre, é nossa glória

Rejeitar grilhão servil;

Pareça a nossa memória

Salva a honra do Brasil.

 

Brasileiros! haja um brado

Nesta terra do Brasil:

Antes a morte de honrado

Do que a vida infame e vil!

 

Podes vir, nação guerreira;

Nesta suprema aflição,

Cada peito é uma trincheira,

Cada bravo um Cipião.

 

Brasileiros! haja um brado

Nesta terra do Brasil:

Antes a morte de honrado

Do que a vida infame e vil!

 

 

 

A CÓLERA DO IMPÉRIO [22]

 

De pé! — Quando o inimigo o solo invade

Ergue-se o povo inteiro; e a espada em punho

É como um raio vingador dos livres!

 

__________

 

Que espetáculo é este! — Um grito apenas

Bastou para acordar do sono o império!

Era o grito das vítimas. No leito,

Em que a pusera Deus, o vasto corpo

Ergue a imensa nação. Fulmíneos olhos

Lança em torno de si: — lúgubre aspecto

A terra patenteia; o sangue puro,

O sangue de seus filhos corre em ondas

Que dos rios gigantes da floresta

Tingem as turvas, assustadas águas.

Talam seus campos legiões de ingratos.

Como um cortejo fúnebre, a desonra

E a morte as vão seguindo, e as vão guiando,

Ante a espada dos bárbaros, não vale

A coroa dos velhos; a inocência

Debalde aperta ao seio as vestes brancas...

É preciso cair. Pudor, velhice,

Não nos conhecem eles. Nos altares

Daquela gente, imola-se a virtude!

 

__________

 

O império estremeceu. A liberdade

Passou-lhe às mãos o gládio sacrossanto,

O gládio de Camilo. O novo Breno

Já pisa o chão da pátria. Avante! avante!

Leva de um golpe aquela turba infrene!

É preciso vencer! Manda a justiça,

Manda a honra lavar com sangue as culpas

De um punhado de escravos. Ai daquele

Que a face maculou da terra livre!

Cada palmo do chão vomita um homem!

E do Norte, e do Sul, como esses rios

Que vão, sulcando a terra, encher os mares,

À falange comum os bravos correm!

 

__________

 

Então (nobre espetáculo, só próprio

De almas livres!) então rompem-se os elos

De homens a homens. Coração, família,

Abafam-se, aniquilam-se: perdura

Uma idéia, a da pátria. As mães sorrindo

Armam os filhos, beijam-nos; outrora

Não faziam melhor as mães de Esparta.

Deixa o tálamo o esposo; a própria esposa

É quem lhe cinge a espada vingadora.

Tu, brioso mancebo, às aras foges,

Onde himeneu te espera; a noiva aguarda

Cingir mais tarde na virgínea fronte

Rosas de esposa ou crepe de viúva.

 

__________

 

E vão todos, não pérfidos soldados

Como esses que a traição lançou nos campos;

Vão como homens. A flama que os alenta

É o ideal esplêndido da pátria.

Não os move um senhor; a veneranda

Imagem do dever é que os domina.

Esta bandeira é símbolo; não cobre,

Como a deles, um túmulo de vivos.

Hão de vencer! Atônito, confuso,

O covarde inimigo há de abater-se;

E da opressa Assunção transpondo os muros

Terá por prêmio a sorte dos vencidos.

 

__________

 

Basta isso? Ainda não. Se o império é fogo,

Também é luz: abrasa, mas aclara.

Onde levar a flama da justiça,

Deixa um raio de nova liberdade.

Não lhe basta escrever uma vitória,

Lá, onde a tirania oprime um povo;

Outra, tão grande, lhe desperta os brios;

Vença uma vez no campo, outra nas almas;

Quebre as duras algemas que roxeiam

Pulsos de escravos. Faça-os homens.

 

__________

 

Treme,

Treme, opressor, da cólera do império!

Longo há que às tuas mãos a liberdade

Sufocada soluça. A escura noite

Cobre de há muito o teu domínio estreito;

Tu mesmo abriste as portas do Oriente;

Rompe a luz; foge ao dia! O Deus dos justos

Os soluços ouviu dos teus escravos,

E os olhos te cegou para perder-te!

 

__________

 

O povo um dia cobrirá de flores,

A imagem do Brasil. A liberdade

Unirá como um elo estes dous povos.

A mão, que a audácia castigou de ingratos,

Apertará somente a mão de amigos.

E a túnica farpada do tirano,

Que inda os quebrados ânimos assusta,

Será, aos olhos da nação remida,

A severa lição de extintos tempos!

 

 

 

DAQUI DESTE ÂMBITO ESTREITO [23]

 

Daqui, deste âmbito estreito,

Cheio de risos e galas,

Daqui, onde alegres falas

Soam na alegre amplidão,

Volvei os olhos, volvei-os

A regiões mais sombrias,

Vereis cruéis agonias,

Terror da humana razão.

 

Trêmulos braços alçando,

Entre os da morte e os da vida,

Solta a voz esmorecida,

Sem pão, sem água, sem luz,

Um povo de irmãos, um povo

Desta terra brasileira,

Filhos da mesma bandeira,

Remidos na mesma cruz.

 

A terra lhes foi avara,

A terra a tantos fecunda;

Veio a miséria profunda,

A fome, o verme voraz.

A fome? Sabeis acaso

O que é a fome, esse abutre

Que em nossas carnes se nutre

E a fria morte nos traz?

 

Ao céu, com trêmulos lábios,

Em seus tormentos atrozes

Ergueram súplices vozes,

Gritos de dor e aflição;

Depois as mãos estendendo,

Naquela triste orfandade,

Vêm implorar caridade,

Mais que à bolsa, ao coração.

 

O coração... sois vós todos,

Vós que as súplicas ouvistes;

Vós que às misérias tão tristes

Lançais tão espesso véu.

Choverão bênçãos divinas

Aos vencedores da luta:

De cada lágrima enxuta

Nasce uma graça do céu.

 

 

 

A FRANCISCO PINHEIRO GUIMARÃES [24]

 

Ouviste o márcio estrépito

E a mão lançando à espada

Foste, soldado indômito,

Vingar a pátria amada,

Do universal delírio

Aceso o coração.

 

Foste, e na luta férvida,

(Glória e terror das almas)

De quais loureiros vividos

Colheste eternas palmas,

Diga-o ao mundo e à história

A boca da nação!

 

Custa sentidas lágrimas

A glória; a terra bebe

Sangue de heróis e mártires

Que a morte ali recebe;

Da santa pátria o júbilo

Custa a melhor das mães.

 

Mas tu, audaz e impávido,

No ardor de cem porfias,

A mão dum ser angélico,

Herói, guiou teus dias;

E no amplo livro inscreveu-te

Dos novos capitães!

 

Se hoje co’as roupas cândidas

Voltou a paz à terra,

Não, não te basta o esplêndido

Louro da extinta guerra;

De outra gentil vitória

A palma aqui terás.

 

Chamam-te as musas, chama-te

A imensa voz do povo,

Que em seu aplauso unânime

Te guarda um prêmio novo;

Vem lutador do espírito,

Colhe os lauréis da paz.

 

 

 

À MEMÓRIA DO ATOR TASSO [25]

 

Vós que esta sala encheis, e a lágrima sentida

E o riso de prazer conosco misturais,

E depois de viver da nossa mesma vida

Ao lar tranqüilo e bom contentes regressais;

 

Que perdeis? Um noute; algumas horas. Tudo,

Alma, vida, razão, tudo vos damos nós:

Um perpétuo lidar, um continuado estudo,

Que um só prêmio conhece, um fim único: vós.

 

E este chão, que juncais de generosas flores,

É nossa alegre estrada, e vamos sem sentir,

Sem jamais indagar as encobertas dores

Que em seu seio nos traz o sombrio porvir.

 

Além, além do mar que separa dous mundos,

Um artista que foi glória nossa e padrão,

Quando à terra subiu dos êxtases profundos

Terna esposa deixou na mágoa e na aflição.

 

Hoje, que vos convida uma intenção piedosa,

Que escutais de além-mar uma súplice voz,

Hoje, a mão estendeis à desvalida esposa;

Obrigada por ele! obrigada por nós!

 

 

 

NO ÁLBUM DO SR. QUINTELA [26]

 

Faz-se a melhor harmonia

Com elementos diversos;

Mesclam-se espinhos às flores:

Posso aqui pôr os meus versos.

 

 


VERSOS [27]

 

Escritos no álbum da Exma. Sra. D. Branca P. da C.

 

 

Pede estrelas ao céu, ao campo flores;

Flores e estrelas ao gentil regaço

Virão da terra ou cairão do espaço,

Por te cobrir de aromas e esplendores.

 

Versos... pede-os ao vate peregrino

Que ao céu tomando inspirações das suas,

A tua mocidade e as graças tuas

Souber nas notas modular de um hino.

 

Mas que flores, que versos ou que estrelas

Pedir-me vens? A musa que me inspira

Mal poderia celebrar na lira

Dotes tão puros e feições tão belas.

 

Pois que me abris, no entanto, a porta franca

Deste livro gentil, casto e risonho,

Uma só flor, uma só flor lhe ponho

E seja o nome angélico de Branca.

 

 

 

SONETO [28]

 

Caro Rocha Miranda e companhia,

Muzzio, Melo, Cibrão, Arnaldo e Andrade,

Enfim, a toda a mais comunidade

Manda saudades o Joaquim Maria.

 

Sou forçado a não ir à freguesia;

Tenho entre mãos, com pressa e brevidade,

Um trabalho de grande seriedade

Que hei de acabar mais dia menos dia.

 

Esta é a razão mais clara e pura

Pelo qual, meus amigos, vos remeto

Uma insinuação de vagatura.

 

Mas, na segunda-feira vos prometo

Que haveis de ter (minha barriga o jura)

Mais uma canja e menos um soneto.

 

 

 

NAQUELE ETERNO AZUL, ONDE COEMA [29]

 

Naquele eterno azul, onde Coema,

Onde Lindóia, sem temor dos anos,

Erguem os olhos plácidos e ufanos,

Também os ergue a límpida Iracema.

 

Elas foram, nas águas do poema,

Cantadas pela voz de americanos,

Mostrar às gentes de outros oceanos

Jóias do nosso rútilo diadema.

 

E, quando a magna voz inda afinavas

Foges-nos, como se a chamar sentiras

A voz da glória pura que esperavas.

 

O cantor do Uruguai e o dos Timbiras

Esperavam por ti, tu lhe faltavas

Para o concerto das eternas liras.

 

 

 

DAI À OBRA DE MARTA UM POUCO DE MARIA [30]

 

Daí à obra de Marta um pouco de Maria,

Dai um beijo de sol ao descuidado arbusto;

Vereis neste florir o tronco erecto e adusto,

E mais gosto achareis naquela e mais valia.

 

A doce mãe não perde o seu papel augusto,

Nem o lar conjugal a perfeita harmonia.

Viverão dous aonde um até 'qui vivia,

E o trabalho haverá menos difícil custo.

 

Urge a vida encarar sem a mole apatia,

Ó mulher! Urge pôr no gracioso busto,

Sob o tépido seio, um coração robusto.

 

Nem erma escuridão, nem mal-aceso dia.

Basta um jorro de sol ao descuidado arbusto,

Basta à obra de Marta um pouco de Maria.

 

 

 

RELÍQUIA ÍNTIMA [31]

 

Ilustríssimo, caro e velho amigo,

Saberás que, por um motivo urgente,

Na quinta-feira, nove do corrente,

Preciso muito de falar contigo.

 

E aproveitando o portador te digo,

Que nessa ocasião terás presente,

A esperada gravura de patente

Em que o Dante regressa do Inimigo.

 

Manda-me pois dizer pelo bombeiro

Se às três e meia te acharás postado

Junto à porta do Garnier livreiro:

 

Senão, escolhe outro lugar azado;

Mas dá logo a resposta ao mensageiro,

E continua a crer no teu Machado.

 

 

 

A DERRADEIRA INJÚRIA [32]

 

E ainda, ninfas minhas, não bastava...

 

CAMÕES, Lusíadas, VII, 81.

 

I

 

Vês um féretro posto em solitária igreja?

Esse pó que descansa, e se esconde, e se some,

Traz de um grande ministro o formidável nome,

Que em vivas letras de ouro e lágrimas flameja.

 

Lá fora uma invasão esquálida braceja,

Como um mar de miséria e luto, que tem fome,

E novas praias busca e novas praias come,

Enquanto a multidão, recuando, peleja.

 

O gaulês que persegue, o bretão que defende,

Duas mãos de um destino implacável e oculto,

Vão sangrando a nação exausta que se rende;

 

Dentre os mortos da história um só único vulto

Não ressurge; um Pacheco, um Castro não atende;

E a cobiça recolhe os despojos do insulto.

 

II

 

Ora, na solitária igreja em que se há posto

O féretro, se alguém pudesse ouvir, ouvira

Uma voz cavernosa e repassada de ira,

De tristeza e desgosto.

 

Era uma voz sem rosto,

Um eco sem rumor, uma nota sem lira.

Como que o suspirar do cadáver disposto

A rejeitar o leito eterno em que dormira.

 

E ninguém, salvo tu, ó pálido, ó suave

Cristo, ninguém, exceto uns três ou quatro santos,

Envolvidos e sós, nos seus sombrios mantos,

 

Ninguém ouvia em toda aquela escura nave

Dessa voz tão severa, e tão triste, e tão grave,

Murmurados a medo, as cóleras e os prantos.

 

III

 

E dizia essa voz: — “Eis, Lusitânia, a espada

Que reluz, como o sol, e como o raio, lança

Sobre a atônita Europa a morte ensangüentada.

 

“Venceu tudo; ei-la aí que te fere e te alcança,

Que te rasga e te põe na cabeça prostrada

O terrível sinal das legiões de França.

 

“E, como se o furor, e, como se a ruína

Não bastassem a dar-te a pena grande e inteira,

Vem juntar-se outra dor à tua dor primeira,

E o que a espada começa a tristeza termina.

 

“És o campo funesto e rude em que se afina

Pugna estranha; não tens a glória derradeira,

De devolver farpada e vencida a bandeira,

E ser Xerxes embora, ao pé de Salamina.

 

IV

 

“No entanto, ao longe, ao longe uma comprida história

De batalhas e descobertas,

Um entrar de contínuo as portas da memória

Escancaradamente abertas,

 

“Enchia esta nação, que aprendera a vitória

Naquela crespa idade antiga,

Quando, em vez do repouso, era a lei da fadiga,

E a glória coroava a glória.

 

“E assim foi, palmo a palmo, e reduto a reduto,

Que um punhado de heróis, que um embrião de povo

Levantara este reino novo;

 

“E livre, independente, esse áspero produto

Da imensa forja pôde, achegando-se às plagas,

Fitar ao longe as longas vagas.

 

V

 

“Era escasso o torrão; por compensar-lhe a míngua,

Assim foi que dobraste aquele oculto cabo,

Não sabido de Plínio, ignorado de Estrabo,

E que Homero cantou em uma nova língua.

 

“Assim foi que pudeste haver África adusta,

Ásia, e esse futuro e desmedido império,

Que no fecundo chão do recente hemisfério

A semente brotou da tua raça augusta.

 

“Eis, Lusitânia, a obra. Os séculos que a viram

Emergir, com o sol dos mares, e a poliram,

Transmitem-lhe a memória aos séculos futuros.

 

“Hoje a terra de heróis sofre a planta inimiga...

Quem pudera mandar aqueles peitos duros!

Quem soubera empregar aquela força antiga!”

 

VI

 

E depois de um silêncio: — “Um dia, um dia, um dia

Houve em que nesta nobre e antiga monarquia,

Um homem, — paz lhe seja e a quantos lhe consomem

A sagrada memória, — houve um dia em que um homem

 

“Posto ao lado do rei e ao lado do perigo

Viu abater o chão; viu as pedras candentes

Ruírem; viu o mal das cousas e das gentes,

E um povo inteiro nu de pão, de luz e abrigo.

 

“Esse homem, ao fitar uma cidade em ossos,

Terror, dissolução, crime, fome, penúria,

Não se deixou cair coos últimos destroços.

 

“Opôs a força à força, opôs a pena à injúria,

Restituiu ao povo a perdida hombridade,

E donde era uma ruína ergueu uma cidade.

 

VII

 

“Esse homem eras tu, ó alma que repousas

Da cobiça, da glória e da ambição do mando,

Eras tu, que um destino, e propício, e nefando,

Ao fastígio elevou dos homens e das cousas.

 

“Eras tu que da sede ingrata de ministro

Fizeste um sólio ao pé do sólio; tu, sinistro

Ao passado, tu novo obreiro, áspero e duro,

Que traçavas no chão a planta do futuro.

 

“Tu querias fazer da história uma só massa

Nas tuas fortes mãos, tenazes como a vida,

A massa obediente e nua.

 

“A luminosa efígie tua

Quiseste dar-lhe, como à brônzea estátua erguida,

Que o século corteja, inda assustado, e passa.

 

VIII

 

“Contra aquele edifício velho

Da nobreza, — elevado ao lado do edifício

Da monarquia e do evangelho, —

Tu puseste a reforma e puseste o suplício.

 

“Querias destruir o vício

Que a teus olhos roía essa fábrica enorme,

E começaste o duro ofício

Contra o que era caduco, e contra o que era informe.

 

“Não te fez recuar nesse áspero duelo

Nem dos anos a flor, nem dos anos o gelo,

Nem dos olhos das mães as lágrimas sagradas.

 

“Nada; nem o negror austero da batina,

Nem as débeis feições da graça feminina

Pela veneração e pelo amor choradas.

 

IX

 

“Ah! se por um prodígio especial da sorte,

Pudesses emergir das entranhas da morte,

Cheio daquela antiga e fera gravidade,

Com que salvaste uma cidade;

 

“Quem sabe? Não houvera em tão longa campanha

Ensangüentado o chão do luso a planta estranha,

Nem correra a nação tal dor e tais perigos

Às mãos de amigos e inimigos.

 

“Tu serias o mesmo aspérrimo e impassível

Que viu, sem desmaiar, o conflito terrível

Da natureza escura e da escura alma humana;

 

“Que levantando ao céu a fronte soberana,

— “Eis o homem!” disseste, — e a garra do destino

Indelével te pôs o seu sinal divino”.

 

X

 

E, soltado esse lamento

Ao pé do grande moimento,

Calou-se a voz, dolorida

De indignação.

 

Nenhum outro som de vida

Naquela igreja escondida...

Era uma pausa, um momento

De solidão.

 

E continuavam fora

A morte, dona e senhora

Da multidão;

 

E devastava a batalha,

Como o temporal que espalha

Folhas ao chão.

 

XI

 

E essa voz era a tua, ó triste e solitário

Espírito! eras tu, forte outrora e vibrante,

Que pousavas agora, — apenas cintilante, —

Sobre o féretro, como a luz de um lampadário.

 

Era tua essa voz do asilo mortuário,

Essa voz que esquecia o ódio triunfante

Contra o que havia feito a tua mão possante,

E a inveja que te deu o pontual salário.

 

E contigo falava uma nação inteira,

E gemia com ela a história, não a história

Que bajula ou destrói, que morde ou santifica.

 

Não; mas a história pura, austera, verdadeira,

Que de uma vida errada a parte que lhe fica

De glória, não esconde às ovações da glória.

 

XII

 

E, tendo emudecido essa garganta morta,

O silêncio voltara àquela nave escura,

Quando subitamente abre-se a velha porta,

E penetra na igreja uma estranha figura.

 

Depois outra, e mais outra, e mais três, e mais quatro.

E todas, estendendo os braços, vão abrindo

As trevas, costeando os muros, e seguindo

Como a conspiração nas tábuas de um teatro.

 

E param juntamente em derredor do leito

Último em que descansa esse único despojo

De uma vida, que foi uma longa batalha.

 

E enquanto um fere a luz que as tênebras espalha,

Outro, com gesto firme e firmíssimo arrojo,

Toma nas cruas mãos aquele rei desfeito.

 

XIII

 

Então... O homem que viu arrancarem-lhe aos braços

Poder, glória, ambição, tudo o que amado havia;

Esse que foi o sol de um século, que um dia,

Um só dia bastou para fazer pedaços;

 

Que, se aos ombros atara uma púrpura nova,

Viu, farrapo a farrapo, arrancarem-lha aos ombros;

Que padecera em vida os últimos assombros,

Tinha ainda na morte uma última prova.

 

Era a brutal rapina, anônima, noturna,

Era a mão casual, que espedaçava a urna

A troco de um galão, a troco de uma espada;

 

Que, depois de tomar-lhe esses sinais funestos

Da sombra de um poder, pegou dos tristes restos,

Ossos só, e espalhou pela nave sagrada.

 

XIV

 

Assim pois, nada falta à glória deste mundo,

Nem a perseguição repleta de ódio e sanha,

Nem a fértil inveja, a lívida campanha,

De tudo o que radia e tudo que é profundo.

 

Nada falta ao poder, quando o poder acaba;

Nada; nem a calúnia, o escárnio, a injúria, a intriga,

E, por triste coroa à merencória liga,

A ingratidão que esquece e a ingratidão que baba.

 

Faltava a violação do último sono eterno,

Não para saciar um ódio insaciável,

Insaciável como os círculos do inferno.

 

E deram-ta; eis-te aí, ó grande invulnerável,

Eis-te ossada sem nome, esparsa e miserável,

Sobre um pouco de chão do ninho teu paterno.

 

 

 

REFUS [33]

 

A Jaime de Séguier

 

Non, je ne paye pas, car il est incomplet

Cet ouvrage. On y voit, certes, la belle touche

Que ton léger pinceau met à tout ce qu'il touche;

Et, pour un beau sonnet, c'est un fort beau sonnet.

 

Ce sont-là mes cheveux, c'est bient-là le reflet

De mes yeux noirs. Je ris devant ma propre bouche.

Je reconnais cet air tendre ainsi que farouche

Qui fait toute ma force et tout mon doux secret.

 

Mais, cher peintre du ciel, il manque à ton ouvrage

De ne pas être dix, tous également doux,

Vibrant d'âme, et parfaits d'art profond, riche et sage.

 

Adieu, donc, le contrat! Je le tiens pour dissous,

Car, pour de beaux portraits, pleins de charme et de vie,

Pour un baiser, je veux toute une galerie.

 

 

 

ENTRA CANTANDO, ENTRA CANTANDO, APOLO! [34]

 

1891

 

Entra cantando, entra cantando, Apolo!

Entra sem cerimônia, a casa é tua;

Solta versos ao sol, solta-os à lua,

Toca a lira divina, alteia o colo.

 

Não te embarace esta cabeça nua;

Se não possui as primitivas heras,

Vibra-lhe ainda a intensa vida sua,

E há outonos que valem primaveras.

 

Aqui verás alegre a casa e a gente,

Os adorados filhos, — terno e brando

Consolo ao coração que os ama e sente.

 

E ouvirás inda o eco reboando

Do canto dele, que terás presente.

Entra cantando, Apolo, entra cantando.

 

 

 

A GUIOMAR [35]

 

1892

 

Ri, Guiomar, anda, ri. Quando ressoa

Tua alegre risada cristalina,

Ouço a alma da moça e da menina,

Ambas na mesma lépida pessoa.

 

E então reparo, como o tempo voa,

Como a rosa nascente e pequenina

Cresceu, e a graça fresca apura e afina...

Ri, Guiomar, anda, ri, mimosa e boa.

 

A bela cor, o aroma delicado,

Por muitos anos crescerão ainda,

Ao vivo olhar do noivo teu amado.

 

Para ti, cara flor, a vida é infinda,

O tempo amigo, longo e repousado.

Ri, Guiomar, anda, ri, discreta e linda.

 

 

 

PRÓLOGO DO INTERMEZZO [36]

 

(H. Heine)

 

Um cavalheiro havia, taciturno,

Que o rosto magro e macilento tinha.

Vagava como quem de algum noturno

Sonho levado, trépido caminha.

Tão alheio, tão frio, tão soturno,

Que a moça em flor e a lépida florinha,

Quando passar tropegamente o viam,

Às escondidas dele escarneciam.

 

A miúdo buscava a mais sombria

Parte da casa, por fugir à gente;

Daquele posto os braços estendia

Tomado de desejo impaciente.

Uma palavra só não proferia.

Mas, pela meia-noite, de repente,

Estranho canto e música escutava,

E logo alguém que à porta lhe tocava.

 

Furtivamente então entrava a amada

O vestido de espumas arrastando,

Tão vivamente fresca e tão corada

Como a rosa que vem desabrochando;

Brilha o véu; pela esbelta e delicada

Figura as tranças soltas vão brincando;

Os meigos olhos dela os dele fitam,

E um ao outro de ardor se precipitam.

 

Com a força que amor somente gera,

O peito a cinge, agora afogueado;

O descorado as cores recupera,

E o retraído acaba namorado,

O sonhador desfaz-se da quimera...

Ela o excita, com gesto calculado;

Na cabeça lhe lança levemente

O adamantino véu alvo e luzente.

 

Ei-lo se vê em sala cristalina

De aquático palácio. Com espanto

Olha, e de olhar a fábrica divina

Quase os olhos lhe cegam. Entretanto,

Junto ao úmido seio a bela ondina

O aperta tanto, tanto, tanto, tanto...

Vão as bodas seguir-se. As notas belas

Vêm tirando das cítaras donzelas.

 

As notas vêm tirando, e deleitosas

Cantam, e cada uma a dança tece

Erguendo ao ar as plantas graciosas.

Ele, que todo e todo se embevece,

Deixa-se ir nessas horas amorosas...

Mas o clarão de súbito fenece,

E o noivo torna à pálida tristura

Da antiga, solitária alcova escura.

 

 

 

A CAROLINA [37]

 

1906

 

Querida, ao pé do leito derradeiro

Em que descansas dessa longa vida,

Aqui venho e virei, pobre querida,

Trazer-te o coração do companheiro.

 

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro

Que, a despeito de toda a humana lida,

Fez a nossa existência apetecida

E num recanto pôs um mundo inteiro.

 

Trago-te flores, — restos arrancados

Da terra que nos viu passar unidos

E ora mortos nos deixa e separados.

 

Que eu, se tenho nos olhos malferidos

Pensamentos de vida formulados,

São pensamentos idos e vividos.

 

 

 

SONETO [38]

 

[No Álbum da Rainha D. Amélia]

 

Senhora, se algum dia aqui vierdes,

A estas terras novas e alongadas,

Encontrareis as vozes que perderdes

De outras gentes por vós há muito amadas.

 

E as saudades que então cá padecerdes,

Das terras vossas, velhas e deixadas,

Nestas cidades, nestes campos verdes,

Serão do mesmo nome acalentadas.

 

Mas nem só isto. Um só falar não basta.

A história o deu, um só falar dileto,

Da mesma compostura, antiga e casta.

 

Achareis mais outro falar discreto,

Sem palavras, que a vossa glória arrasta,

A mesma admiração e o mesmo afeto.

 

 

 

A FRANCISCA [39]

 

 

Nunca faltaram aos poetas (quando

Poetas são de veia e de arte pura),

Para cantar a doce formosura,

Rima canora, verso meigo e brando.

 

Mas eu triste poeta miserando,

Só tenho áspero verso e rima dura;

Em vão minh'alma sôfrega procura

Aqueles sons que outrora achava em bando.

 

Assim, gentil Francisca delicada,

Não achando uma rima em que te veja

Harmoniosamente bem rimada,

 

Recorrerei à Santa Madre Igreja

Que rime o nome de Francisca amada

Com o nome de Heitor, que amado seja.

 

 

 

 

À ILMA. SRA. D. P. J. A. [40]

 

Quem pode em um momento descrever

Tantas virtudes de que sois dotada

Que fazem dos viventes ser amada

Que mesmo em vida faz de amor morrer!

 

O gênio que vos faz enobrecer,

Virtude e graça de que sois c'roada

Vos fazem do esposo ser amada

(Quanto é doce no mundo tal viver!)

 

A natureza nessa obra primorosa,

Obra que dentre todas as mais brilha,

Ostenta-se brilhante e majestosa!

 

Vós sois de vossa mãe a cara filha,

Do esposo feliz, a grata esposa,

Todos os dotes tens, ó Petronilha.

 

 

 

A SAUDADE [41]

 

Ao meu primo o Sr. Henrique José Moreira

 

Meiga saudade! — Amargos pensamentos

A mente assaltam de valor exausta,

Ao ver as roxas folhas delicadas

       Que singelas te adornam.

 

Mimosa flor do campo, eu te saúdo;

Quanto és bela sem seres perfumada!

Que te inveja o jasmim, a rosa e o lírio

       Com todo o seu perfume?

 

Repousa linda flor, num peito f 'rido,

A quem crava sem dó a dor funesta,

O horrível punhal, que fere e rasga

       Um débil coração.

 

Repousa, linda flor, vem, suaviza

A frágua que devora um peito ansioso,

Um peito que tem vida, mas que vive

       Envolto na tristeza!...

 

Mas não... deixo-te aí causando inveja;

Não partilhes a dor que me consome,

Goza a ventura plácida e tranqüila,

       Mimosa flor do campo.

 

 

 

JÚLIA [42]

 

Teu rosto meigo e singelo

Tem do Céu terno bafejo.

 

Tu és a rosa do prado

Desabrochando ao albor

Abrindo o purpúreo seio,

Abrindo os cofres de amor.

 

Tu és a formosa lua

Percorrendo o azul dos céus,

Retratando sobre a linfa.

Os seus alvacentos véus.

 

Tu és a aurora formosa

Quando dalém vem surgindo;

E que se ostenta garbosa

Áureas flores espargindo.

 

Tu és perfumada brisa

Sobre o prado derramada

Que goza os doces sorrisos

Da formosa madrugada.

 

Tua candura e beleza

Tem de amor doce expressão

És um anjo, minha Júlia,

Donde nasce a inspiração.

 

Quando a terra despe as galas

E os mantos da noite veste,

Vejo brilhar tua imagem

Lá na abóbada celeste.

 

Nela vejo as tuas graças,

Nela vejo um teu sorriso

Nela vejo um volver d'olhos

Nascido do paraíso.

 

És ó Júlia, meiga virgem

Que temente ora ao Senhor;

São teus olhos duas setas.

O teu todo é puro amor.

 

 

 

MEU ANJO [43]

 

Um anjo desejei ter a meu lado...

E o anjo que sonhei achei-o em ti!...

 

C. A. DE SÁ

 

És um anjo d’amor — um livro d’ouro,

       Onde leio o meu fado

És estrela brilhante do horizonte

       Do Bardo enamorado

Foste tu que me deste a doce lira

       Onde amores descanto

Foste tu que inspiraste ao pobre vate

       D’amor festivo canto;

É sempre nos teus cantos sonorosos

       Que eu bebo inspiração;

Risos, gostos, delícias e venturas

       Me dá teu coração.

teu nome que trago na lembrança

       Quando estou solitário,

Teu nome a oração que o peito reza

       D'amor um santuário!

E tu que és minha estrela, tu que brilhas

       Com mágico esplendor,

Escuta os meigos cantos de minh’alma

       Meu anjo, meu amor.

 

Quando sozinho, na floresta amena

       Tristes sonhos modulava,

Não em lira d'amor — na rude frauta

       Que a vida me afagava,

Tive um sonho d'amor; sonhei que um anjo

       Estava ao lado meu,

Que com ternos afagos, com mil beijos

       Me transportava ao céu.

Esse anjo d'amor descido acaso

       De lá do paraíso,

Tinha nos lábios divinais, purpúreos

       Amoroso sorriso;

Era um sorriso que infundia n'alma

       O mais ardente amor;

Era o reflexo do formoso brilho

       Da fronte do Senhor.

É anjo sonhado, cara amiga,

       A quem consagro a lira,

És tu por quem minh'alma sempre triste

       Amorosa suspira!

 

Quando contigo, caro bem, d'aurora

       O nascimento vejo

Em um berço florido, e de ventura

       Gozarmos terno ensejo;

Quando entre mantos d'azuladas cores

       A meiga lua nasce

E num lago de prata refletindo

       Contempla a sua face;

Quando num campo verdejante e ameno

       Dum aspecto risonho

Ao lado teu passeio; eu me recordo

       Do meu tão belo sonho

E lembra-me esse dia venturoso

       Em que a vida prezei

Que vi teus meigos lábios me sorrirem,

       Que logo te adorei!

 

Nesse dia sorriu a natureza

       Com mágico esplendor

Parecia augurar ditoso termo

       Ao nosso puro amor.

E te juro, anjo meu, ditosa amiga,

       Por tudo que há sagrado,

Que esse dia trarei junto ao teu nome

       No meu peito gravado.

E tu que és minha estrela, tu que brilhas

       Com mágico esplendor,

Escuta os meigos cantos de minh'alma,

       Meu anjo, meu amor!

 

 

 

UM SORRISO [44]

 

Em seus lábios um sorriso

É a luz do paraíso.

 

GARRET

 

Não sabes, virgem mimosa,

Quanto sinto dentro d'alma

Quando sorris tão formosa

Sorriso que traz-me a calma:

Brando sorriso d'amores

Que se desliza entre as flores

De teus lábios tão formosos;

Doce sorriso que afaga

Do peito a profunda chaga

De tormentos dolorosos.

 

Quando o diviso amoroso

Por sobre as rosas vivaces

Torno-me louco, ansioso,

Desejo beijar-te as faces;

 

Corro a ti... porém tu coras

Logo súbito descoras

Arrependida talvez...

Na meiga face t'imprimo

Doce beijo, doce mimo

Da paixão que tu bem vês

 

Eu gosto, meiga donzela,

De ver-te sorrindo assim

Semelhas divina estrela

Que brilhas só para mim:

És como uma linda rosa

Desabrochando mimosa

Ao respiro da manhã:

És como serena brisa

Que no vale se desliza,

Seu mais terno e doce afã.

 

O brando favônio ameno;

Da fonte o gemer sentido,

Da lua o brilho sereno

Sobre um lago refletido

Não tem mais doces encantos

Que, sobre os puníceos mantos

Dos lábios teus um sorriso.

 

Sorriso que amor me fala

Como d'alva o encanto, a gala

Quando serena a diviso.

 

Sorri, sorri, que teu sorriso brando

       Minhas penas acalma;

É como a doce esp'rança realizada

       Que as ânsias desvanece!

 

E se queres em troca dum sorriso

       Uma prova de amor

Vem para perto de mim m' escuta ao peito

       Na face um beijo toma...

 

 

 

PARÓDIA [45]

 

Se eu fora poeta de um estro abrasado

Quisera teu lindo semblante cantar;

Gemer eu quisera bem junto a teu lado,

Se eu fora uma onda serena do mar;

 

Se eu fora uma rosa de prado relvoso,

Quisera essa coma, meu anjo, adornar;

Se eu fora um anjinho de rosto formoso

Contigo quisera no espaço voar;

 

Se eu fora um astro no céu engastado

Meu brilho, quisera p’ra ti só brilhar;

Se eu fora um favônio de aromas pejado

Por sobre teu corpo me iria espraiar;

 

Se eu fora das selvas um’ave ligeira

Meus cantos quisera p’ra ti só trinar;

Se eu fora um eco de nota fagueira

Fizera teu canto no céu ressoar;

 

Mas eu não sou astro, poeta, ou anjinho,

Nem eco, favônio, nem onda do mar;

Nem rosa do prado, ou ave ligeira;

Sou triste que a vida consiste em te amar.

 

 

 

A SAUDADE [46]

 

Saudade! ó casta virgem,

Qu'inspiraste a Bernardim,

Nos meus dias de tristeza

Consolar tu vens a mim.

 

E G. BRAGA

 

       Saudade! d’alma ausente, o acerbo impulso,

Mágico, doce sentimento d’alma

Místico enleio que nos cerra doce

O espírito cansado!... Oh! saudade,

Para que vens pousar-te envolta sempre

Em tuas vestes roxeadas tristes,

Nas débeis cordas de minh’harpa débil?!...

Doce chama me ateias dentro d’alma.

Meiga esperança que me nutre em sonhos

De cândida ventura!... Ó saudade,

D'alma esquecida o despertar pungente;

Doce virgem do Olimpo rutilante,

Que co'a taça na destra à terra baixas

E o agro, doce líquido entornando

Em coração aflito, meiga esparges

Indizível encanto, que deleita,

Melancólicas horas num letargo

D'espírito cansado, d’alma aflita,

Que plácida flutua extasiada,

Na etérea região, morada excelsa

Do sidéreo esplendor que a mente inflama;

Tu que estreitas minh’alma em doce amplexo

Preside ao canto meu, ao pranto, às dores.

 

Quando a noite vaporosa,

       Silenciosa,

Cinge a terra em manto denso;

Quando a meiga, a clara Hebe.

       Cor de neve

Branda corre o espaço imenso.

Quando a brisa suspirando,

       Sussurrando,

Move as folhas do arvoredo,

Qual eco d’um som tristonho

       Que num sonho

 Revela ao Vate um segredo.

 

Quando, enfim, se envolve o mundo

       Num profundo

Silêncio que ao Vate inspira,

Vens a meu lado sentar-te,

       Vens pousar-te.

Nas cordas de minha lira.

 

E me cinges num abraço

       Doce laço

Que se aperta mais, e mais;

E depois entre os carinhos,

       Teus espinhos

Em minh'alma repassais!

 

Entre a melancolia

       De poesia

Me dais santa inspiração

Da alma solto uma endeixa,

       Triste queixa,

Triste queixa, mas em vão.

 

Na morada estelífera vagueia

Minh’alma em teus carinhos absorta.

D'aéreo berço, sobre ameno encosto

Adormece de amor, junto a teu lado,

E geme melancólica... e suspira,

Té que desponte da ventura a aurora!

 

 

 

NO ÁLBUM DO SR. F. G. BRAGA [47]

 

Pago ao gênio um tributo merecido

Que a gratidão me inspira;

Fraco tributo, mas nascido d'alma.

 

MAG. SAUDADES

 

Qual descantou na lira sonorosa

O terno Bernardim com voz suave;

Qual em tom jovial cantou Elmano

Brandas queixas de amor, tristes saudades

Que em seus cantares mitigou; oh! Vate,

Assim da lira tu, ferindo as cordas,

Cantas amores que em teu peito nutres,

Choras saudades que tu'alma sente;

Ou ergues duradouro monumento

À cara pátria que distante choras.

 

Do Garrett divino — o Vate excelso

Renasce o brilho inspirador das trovas,

Das mimosas canções que o mundo espantam

Nesse canto imortal sagrado aos manes

Do famoso Camões, cantor da Lísia

São carmes que te inspira o amor da Pátria.

Nele relatas em divinos versos

O exímio Trovador, a inteira vida

Já no campo de Marte; já no cume

Do Parnaso bradando aos povos todos

Os feitos imortais da lusa gente!

Nessa epopéia, monumento excelso

Que em memória do Vate à pátria ergueste,

Ardente se desliza a etérea chama,

Que de Homero imortal aos sucessores

Na mente ateia o céu com forte sopro!

 

Euterpe, a branda Euterpe nos teus lábios

Da taça d’ouro, derramando o néctar

Deu-te a doce com que outr’ora

Extasiou Virgílio ao mundo inteiro!

"Empunha a lira d'ouro, e canta altivo

Um Tasso em ti se veja — o estro excelso

De Camões imortal, te assoma à mente;

E de verde laurel cingida a fronte

Faz teu nome soar na voz da fama!"

Foram estas frases com que Apolo

Poeta te fadou quando nasceste,

E em doce gesto te imprimiu na fronte

Um astro de fulgor, que sempre brilha!

 

Ah! que não possam estes pobres versos,

Que n’áureas folhas de teu belo livro

Trêmulo de prazer co’a destra lanço,

Provar-te o assombro, que ao ouvir te sinto!

Embora!.., entre os arquejos de minh’alma

Do opresso coração entre os suspiros

As brandas vibrações da pobre lira

Vão em tua alma repetir sinceros

Votos dest’alma que te prove o assombro

Que sinto ao escutar-te as notas d'harpa!

 

 

 

A UMA MENINA [48]

 

La esencia de las flores

Tu dulce aliento sea.

 

QUINTANA

 

Desabrochas ainda; tu és bela

       Como a flor do jardim;

És doce, és inocente, como é doce

       Divino Querubim.

 

Nas gotas da pureza inda se anima

       A tu'alma infantil;

Não te nutre inda o peito da malícia

       Mortífero reptil.

 

Quando sorris trasbordam de teus lábios

       As gotas d’inocência;

No teu sorriso se traduz o encanto

       Da tua pura essência.

 

És anjo, e são os anjos que confortam

       Os tormentos da vida;

Vive, e não haja em teu semblante a prova

       De lágrima vertida!

 

 

 

O GÊNIO ADORMECIDO [49]

 

Ao Ilmo. Sr. Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa

 

Do Grego Vate expande-se a harmonia

Em teus sonoros carmes! Na harpa d'ouro

Do sacro Apollo, Trovador, dedilhas

Doces cantos que o espírito arrebata

       Ao recinto celeste!

 

Em cit’ra de marfim, com fios d’ouro

Cantaste infante, para que mais tarde

A fama ativa as tubas embocando

Com voz imensa proclamasse aos mundos

       Um gênio americano!

 

E tu dormes, Poeta?! Da palmeira

No verde tronco penduraste a lira.

Após nela entoar linda epopéia,

Que mau condão funesto à nossa pátria

       Faz soporoso o Vate!

 

Vatel Vate!... Que morre harmonioso!

Semelha um som ao respirar das brisas

Nas doces cordas do alaúde d'ouro

Pendurado no ramo da palmeira,

       Que sombreia o regato!

 

Desperta, ó Vate, e libertando o estro

Desprende a voz, e os cânticos divinos;

Deixa entornar-se em teus ungidos lábios

Como a ribeira deslizando o corpo

       Cercado de boninas.

 

Sim, ó Vate, o teu canto é tão sonoro

Como os sons da Seráfica harmonia

Dos sonorosos cantos sublimados

Do doce Lamartine — o Bardo excelso.

       Da França o belo Gênio!

 

Toma a lira de novo, e um canto vibra,

E depois ouvirás a nossa terra

Orgulhosa dizer: — Grécia, emudece

Dos vates berço, abrilhantado surge

       O Gênio adormecido!

 

 

 

O PROFETA [50]

(FRAGMENTO)

 

...ungido crente,

Alma de fogo, na mundana argila.

 

M. A. A. AZEVEDO

 

Do sacro templo, sobre as negras ruínas

       lá medita o profeta

Com fatídica voz, dizendo aos povos

       Os decretos de um Deus;

Ao rápido luzir do raio imenso

       Traçando as predições.

Dos soltos furacões, libertas asas

       Adejam sobre a terra:

Do sacro templo em denegridos muros

       Horríssono gemendo

Lá fende o seio de pesadas nuvens

       O fulminoso raio

Sinistro brilho, que o terror infunde.

       Que negro e horrível quadro!

Propínquo esboço da infernal morada!...

..........................................................

E o profeta ergue a fronte, a fronte altiva

Cheio de inspiração, de vida cheio;

Revolvem-se na mente escandescida

Inspiradas idéias que Deus cria

Nesse cofre que encerra arcanos sacros;

Revolvem-se as idéias, pensamentos

Que num lampejo abrangem as idades

       Rápidas aglomeradas

Nesse abismo que os séculos encerra!

       Profeta, em que meditas,

espírito de Deus que te revela?

       Um novo cataclismo

Que a terra inunde e a humanidade espante?

De guerras sanguinosas longa série?

A desgraça talvez dum povo inteiro?

Enviado de Deus, conta-me os sonhos

Que te revelam do futuro as sortes

Quando absorto em sacros pensamentos

A fronte reclinando tu dormitas

Essas visões que à hora do silêncio

Quando reina o pavor, e as trevas reinam

Os céus ensaiam qu’o porvir revelam:

E quando é bela a noite, quando brilha

       A prateada lua

Lâmpada argêntea, que alumia as trevas

       Quando fulguram meigos

Formosos, belos astros, que semelham

       Longa série de luzes

Que a lousa aclaram do sepulcro imenso:

       O que te inspira o céu?

......................................................

Já sossega a tormenta; — refreados

jazem mudos os ventos; só a brisa

Plácida expele as condensadas nuvens;

Envolta em negro véu lá brilha acaso

Medrosa estrela que sorri medrosa:

‘Stá muda a atmosfera! Lá se ergue

De súbito o profeta, (sacra gota

Na mente lhe verteu do Eterno a destra),

Do Supremo Arquiteto o mando grava

No extenso muro do arruinado templo!...

 

 

 

O PÃO D'AÇÚCAR [51]

 

Salve, altivo gigante, mais forte

Que do tempo o cruel bafejar,

Que avançado campeias nos mares,

Seus rugidos calado a escutar.

 

Quando Febo ao nascente aparece

Revestido de gala e de luz,

Com seus raios te inunda, te beija,

Em tua fronte brilhante reluz.

 

Sempre quedo, com a fronte inclinada,

Acoberto dum véu denegrido;

Tu pareces gigante que dorme

Sobre as águas do mar esquecido.

 

És um rei, sobranceiro ao oceano,

Parda névoa te cobre essa fronte,

Quando as nuvens baixando em ti pairam

Matizadas do sol no horizonte.

 

Fez-te o Eterno surgir d’entre os mares

C’uma frase somente, c’um grito

Pos-te à fronte gentil majestade,

Negra fronte de duro granito.

 

Ruge o mar, a procela te açoita,

Feros ventos te açoitam rugindo;

O trovão lá rebrama furioso,

E impassível tu ficas sorrindo.

 

E da foice do tempo se solta

Sopro fero de breve eversão,

Quer feroz te roubar para sempre;

Tu sorris, qual sorris ao trovão.

 

Salve, altivo gigante, mais forte

Que do tempo o cruel bafejar,

Que avançado campeias nos mares,

Seus rugidos calado a escutar.

 

 

 

SONETO A S. M. O IMPERADOR, O SENHOR D. PEDRO II [52]

 

Nesse trono Senhor, que foi erguido

Por um povo já livre, e sustentado

Por ti, que alimentando as leis, o estado

Hás na História teu Nome engrandecido!

 

Nesse trono, Senhor, onde esculpido

Tem à destra do Eterno um nome amado,

Vês nascer este dia abrilhantado

Sorrindo a ti, Monarca esclarecido.

 

Eu te saúdo neste dia imenso!

Da Clemência, Justiça e sã Verdade,

Queimando às piras perfumoso incenso.

 

Elevado aos umbrais da imensidade

Terás fama, respeito e amor intenso.

Um Nome transmitindo à Eternidade!

 

Rio, 2 de dezembro de 1855.

Pelo seu reverente súdito

J. M. M. d'Assis. 

 

 

 

À MADAME ARSÈNE CHARTON DEMEUR [53]

 

Heroína da cena, que entre as flores

Que a senda esmaltam da carreira d’arte

Em que orgulhosa pisas, ostentando

A fronte além das sombras que forcejam

Debalde por calcar teu nome e glória,

Colhes coroas mil com que te adornas

Benévola me escuta. Eu sou bem fraco,

Mas poeta me creio, se o teu nome

Na lira acordo que meu peito exalta.

Que val o templo, se lhe falta o nume?

Não nos fujas daqui, Charton divina!

Deserto fica o majestoso alcáçar

Que Verdi exalta com florões de glória!

Deserta a cena onde pisaste, ornando

A fronte altiva de lauréis, de flores,

Em face a um povo que aplaudindo o gênio

Com palmas estrondosas, te há mostrado

Quanto estima o talento, quanto te ama!

Deserto o nosso espírito de gozos,

Suaves sensações que o ser enleva;

Da tua bela voz ermo de influxos,

Repercutindo apenas dentro d'alma

Os ecos do teu canto sonoroso,

A cada som pungindo uma saudade!

Oh sol que o céu das artes iluminas,

É cedo o ocaso teu na nossa terra!

Um dia mais, um dia mais de enlevos:

Fica, Charton — contigo a luz gozamos;

Sem ti — sombria treva a cena envolve!

 

Anjo de Melodias, quem soubera

Imitar de teu peito — harpa celeste -

O meigo som, para louvar num hino,

'Teu canto que tu mesma hás já louvado!

Quem me dera, Charton, sentir na mente

De Alfredo de Musset o gênio em chamas

De imenso ardor, para com voz altiva

Levantar-te um padrão, mais duradouro

Que o mármor ou que o bronze, que lembrasse

Junto do nome teu meu nome obscuro!

Mas não posso obter do austero fado

Glória maior que admirar-te o gênio

Num pobre canto, que o teu canto inspira!

Musa gentil dos versos que ora teço,

Quando longe de nós, lá noutro palco,

Traduzindo as de Verdi obras sublimes,

Outros mortais que anelam ver teu rosto

E ouvir teu canto cheio de harmonias,

Com meiga e doce voz extasiares,

Recorda o canto meu, — recorda o vate

Que mais que todos te admira o canto,

Talento e garbo que ostentas na cena!

............................................................

Não mais minh’arpa! — Inda uma vez te peço,

Não nos fujas daqui, Charton divina!

Inda uma vez de teu talento o brilho

Esparge sobre nós, que eu te asseguro

Não nos falece o santo entusiasmo

Com que já te acolhemos!

Grande eterno,

Refulge o nume no altar da glória.

Grande é Stoltz, mas Stoltzs há muitas;

Charton só uma, que no mundo impera!

 

 

 

O MEU VIVER [54]

 

Chama-se a vida a um martírio certo

Em que a alma vive se morrer não pode,

É crer que há vida p'ra o arbusto seco,

Que as folhas todas para o chão sacode.

 

Dizer que eu vivo... e minha mãe perdi,

Minha alma geme e o coração de amores,

É crer que um filho, sem a mãe... sozinho,

Também existe, com pungentes dores.

 

Dizer que vivo, se ausente existo

Da amante terna, tão formosa e pura,

E crer que triste desgraçado preso

Vive também lá na masmorra escura.

 

Quero despir-me desta vida má,

Quero ir viver com minha mãe nos céus,

Quero ir cantar os meus amores todos,

Quero depois em ti pensar, meu Deus!

 

 

 

DORMIR NO CAMPO [55]

 

Ao terno suspirar do arroio brando,

Quanto é belo o repouso em campo ameno!

Em noite de verão, que a brisa geme,

Em noite em que o luar brilha sereno!

 

Acorda-se alta noite: no silêncio

Envolta jaz a terra adormecida;

Verseja-se um minuto, à noite, à lua,

E torna-se a dormir... Que bela vida!

 

Se se ouve o piar d’ave noturna

Solta-se a ela mesma um doce canto,

Lança-se extremo olhar da lua ao brilho

Estorna-se a dormir sob seu manto.

 

Não há vida melhor por certo; eu juro

Não a trocar por outra ainda que bela;

Não há nada no mundo mais sublime

Que um homem contemplar a sua estrela.

 

É belo o despertar, abre-se os olhos

Suavemente as pálpebras se erguendo

Dir-se-ia a serena e branda aurora.

Que vai rubra madeixa desprendendo.

 

Senta-se abrindo os olhos, bocejando.

Lançando à banda a destra agarra a lira,

Preludia-se um canto, um canto d’alma

E o terno coração terno suspira.

 

Erguendo-se sacode a véstia, as calças,

Compõe-se o vestuário com asseio,

E cuidadoso segurando a lira,

Vai-se dar pelo campo almo passeio.

 

Procura-se depois uma serrana

E se tece uma endeixa após um beijo

(Que é de beijos que o vale se sustenta)

Embora à face ardente assome o pejo.

 

Não há vida melhor, por certo, eu juro

Não a troco por outra, ainda que bela;

Não há nada no mundo mais sublime

Que amar-se alguma rústica donzela!

 

 

 

CONSUMMATUM EST! [56]

 

Povos, curvai-vos

A redenção do mundo consumou-se.

 

JOÃO DE LEMOS

 

I

 

Na treva sombria de sacra tristeza,

Gemendo se envolvem a terra e os céus,

E a alma do crente num cântico acesa,

Revolve na idéia, suplício de um Deus.

 

Recorda a cidade que outrora folgando

Sorria descrente de um Deus à paixão,

E hoje proscrita lá dorme escutando

Do Eterno a palavra que diz: “Maldição!”

 

De Cristo os martírios, a dor tão intensa

De santa humildade, são provas fiéis,

E as gotas de sangue, as bases da crença,

Da crença que fala nos povos, nos reis!

 

Entremos no Templo, e um cântico d’alma

Em ondas de incenso mandemos aos céus,

E ao mestre divino, de mártir com a palma,

Curvados oremos num cântico a Deus!

 

II

 

Senhor! entre apupadas dos algozes

Foste levado ao cimo do Calvário

       Para a morte sofrer!

De Deus ouviste as tão sagradas vozes,

Cheio de sangue envolto em um sudário

       Tu quiseste morrer!

 

Quiseste, porque assim se revogava

Da pena eterna a tão fatal sentença

       Que o pecado traçou!

E o sangue que teu corpo derramava

Era alto preço e animava a crença,

       Que o pecado abismou!

 

E caminhaste ao Gólgota, levando

A cruz onde por nós foste cravado:

       Cruenta imolação!

O sangue teu em jorros borbotando,

E teu corpo de açoites tão chagado,

       Sem dó, sem compaixão!

 

Oh! Cristo! e tu sofreste tais injúrias!

Foste arrastado ao cimo do Calvário,

       Morto a plebe te quis!

Não quiseste embargar o ardor das fúrias;

Tu, cuja voz a Lúcifer tartáreo

       Curva a negra cerviz!

 

“Perdoai-lhes, Senhor!” disseste, quando

Quase a expirar os olhos levantaste

       Ao céu anuviado,

E já da morte gélido arquejando,

Com fraca e triste voz pronunciaste:

       "Tudo está consumado!"

 

E o mundo remiu-se! De Deus à morada,

Gozando outra vida, se eleva Jesus!...

Cristãos! penetremos a casa sagrada,

E a Cristo adoremos em torno da cruz!

 

 

 

SAUDADES [57]

 

Chora meu coração, minh’alma geme

De saudades de ti, minha querida;

Já não posso no mundo ter prazer,

Já meu coração não tem mais vida.

 

Tenho de ti saudade, só lastimo

Ter cedo minha mãe perdido a vida;

Choro tanto por ela... por ti sofro

Minha vida, mulher, é tão sentida!

 

Tenho de ti saudades, da tua imagem;

Qual o exilado só, em terra estranha,

Eu cedo morrerei, pressinto n’alma;

Não se pode viver com dor tamanha.

 

Parece que no céu bem negra nuvem

já marcou meu destino pelo mundo!

Tenho de ti saudades, ó meu anjo.

No meu peito o pesar é tão profundo!

 

Se perdi minha mãe sendo tão moço,

Se padeço de ti tanta saudade,

Não posso existir no mundo triste;

Ë melhor eu morrer nesta idade!

 

 

 

LÁGRIMAS [58]

 

À memória de minha mãe

 

Há uma dor que não se apaga d’alma,

Lágrima triste que pendente existe

       Da face do infeliz:

É gemido que mata e não se acalma,

Que torce o coração, e se persiste,

       A existência maldiz.

 

Essa dor eu senti quando vi morta

Minha terna mãe... perdão, meu Deus.

       Se quero já morrer;

Esta vida de dor perder que importa?

Quero com minha mãe morar nos céus,

       Com os anjos viver.

 

Eu perdi minha mãe... era uma santa,

Que tinha a minha vida neste mundo,

       Minh’alma e meu amor!

E foi o meu pesar, minha ânsia tanta,

Que a vida quis deixar num ai profundo,

       Morrer também de dor.

 

Só lágrimas de sangue eu sinto agora

Afogaram-me os olhos, e o martírio

       Emurcheceu-me a vida;

Eu tenho pouca idade, mas embora,

Sente apagar-se da existência o círio

       Minh’alma amortecida.

 

Maldigo minha vida, por seu filho

A minha pobre mãe chama nos céus

       Quando eu rezo por ela;

Choro vendo que só no mundo trilho;

Quero com minha mãe viver, meu Deus,

       No céu, bem junto dela!

 

 

 

NÃO? [59]

 

Vi-te: em teu rosto voluptuoso e belo

O anjo formoso dos amores vi!

Amor ardente num olhar, num elo

Destes teus olhos divinais senti!

 

Vi-te: e prendeu o teu esbelto talhe

O mimo, a graça do teu corpo em flor.

E esses teus lábios como a flor de um baile

Que às auras murcham de festivo amor.

 

Vi-te: e eras minha ao meu olhar magnético

E te prendias a fugir de mim!

Fronte de lírios de um candor angélico

Em um perfume me darás um — sim!

 

Um sim de envolta àquele olhar ardente

Luz de teus olhos, divinal fulgor.

Um sim de envolta àquele rir demente

Reflexo d’alma a delirar de amor!

 

Um sim! E ao som do teu falar suave

À minha voz extinguirei o som

Onde gorjeia uma garganta de ave;

Que vale ao homem da palavra o dom?

 

Íntima frase que só nasce d’alma

Terei nos olhos p’ra dizer-t'o então

E em troca dela p’ra colher a palma

Do teu amor, anjo terrestre... não?

 

 

 

RESIGNAÇÃO [60]

 

Adeus! é o meu suspiro derradeiro!

É a última ilusão que me embebia!

Apagou-se-me o sol das esperanças

E veio a noite sepulcral sombria...

 

Adeus..., perdoa a um doido apaixonado

Uma hora de ilusão e de delírio:

Era fatalidade. Após um sonho

Veio a c’roa da dor e do martírio!

 

Se ao hálito fatal da desventura

Emurcheceu a flor dos meus afetos,

Se não pousaste em minha fronte ardente

Amorosa uma vez teus olhos pretos;

 

Não te crimino, não; teu culto é livre.

Viver nas ilusões é minha sina:

Não fui fadado p’ra banhar meus lábios

Nos raios dessa fronte peregrina!

 

 

 

AMANHÃ [61]

 

Amanhã quando a lâmpada da vida

Na minha fronte se apagar, tremendo,

       Ao sopro do tufão,

Oh! derrama uma lágrima sincera

Sobre o meu peito macilento e triste,

       E reza uma oração!

 

Será uma saudade verdadeira,

Uma flor que me arome a sepultura,

       Um raio sobre o gelo...

Ouvirei a canção das tuas dores,

E levarei saudades bem sombrias

       Deste meu pesadelo.

 

Lembrarei além-túmulo essas noites

Misteriosas festivais e belas

       Da estação dos amores!

Noites formosas, para amor criadas;

Que coroavam nosso amor tão puro

       De ventura e de flores!

 

Lembrarei nosso amor... E o teu pranto

Ardente como a luz de um sol do estio

       Irá banhar-me a campa

E as lágrimas leais que derramares,

O astro beijará — que pelas noites

       No oceano se estampa!

 

Um olhar, um olhar desses teus olhos!

Eu o peço, mulher! sobre o meu túmulo

       Um olhar de afeição!

Assim o sol — o ardente rei do espaço

Deixa um raio cair nas folhas secas

       Que matizam o chão!

 

Um olhar, uma lágrima, uma prece,

É quanto basta em única lembrança.

       Teresa, ao teu cantor.

Chora, reza, e contempla-me o sepulcro

E na outra vida de um viver mais puro

       Terás o mesmo amor,

 

 

 

A*** [62]

 

Viens, je suis dans la nuit, mais je puis voir le jour!

 

VICTOR HUGO

 

Oh! se eu pudesse respirar num beijo

O teu hálito ardente e vaporoso.

E na febre do amor e do delírio

Sobre o teu seio estremecer de gozo!

Oh! se eu pudesse nessa fronte bela

A coroa depor dos meus amores,

E embevecer-me como em sonho aéreo

De teus olhos nos mágicos fulgores.

Ai! respirara então ainda uma vida.

       Oh pálida visão!

Nessa flor que os sentidos embriaga

       E aroma o coração!

 

Vem; dá-me o teu amor; careço dele

       como do sol a flor,

Reanima a cinza de meu peito morto,

       Ai! dá-me o teu amor!

 

 

 

DEUS EM TI [63]

 

É quando eu sinto embriagar-me o peito

       Um místico vapor,

E à luz fecunda desses olhos belos

Da minha alma ter vida e alento — a flor;

 

É quando as tranças dessa fronte loura

       Prendem o meu olhar,

E sinto o coração tremer ardente.

Como uma flor aos zéfiros do mar;

 

É ao ouvir-te as místicas idéias

       Tão cheias de paixão,

Nessa eloqüência lânguida e profunda

       Que fala ao coração;

 

É ao sentir as tuas asas brancas,

       Ó meu anjo de amor,

Que eu reconheço a mão do rei da terra

       E creio no Senhor! —

 

 

 

ESTA NOITE [64]

 

Os teus beijos ardentes,

Teus afagos mais veementes,

Guarda, guarda-os, anjo meu;

Esta noite entre mil flores,

Um sonho todo de amores

Nos dará de amor um céu!

 

 

 

VEM! [65]

 

Oh! laisse-moi t'aimer pour que j'aime la vie,

Pour ne point au bonheur dire un dernier adieu!

 

ALEXANDRE DUMAS

 

Como ao luar da noite as flores dormem,

Vem dormir sob a luz dos olhos meus!

Hão de as brisas beijar-te as tranças belas

E desmaiar de amor nos seios teus!

 

Como um círio fantástico de amores

Tanta luz sobre a praia a lua entorna!

Oh! deixa aos raios do luar saudoso

Ornar de flores essa fronte morna!

 

Deixa que como um doido, um insensato

Eu me embeba em teus olhos transparentes,

E embalado num sonho fervoroso.

Ouça-te ao peito as pulsações ardentes!

 

É tão doce! tão belo estar contigo!

Pobre andorinha errante dos amores,

Achaste um coração! na primavera

Não desmaiam as aves, nem as flores.

 

Se a capela de noiva desfolhaste

Nas noites tuas, nos delírios teus,

Qu’importa? ainda nas asas dos amores

Podes voar ao céu, anjo de Deus!

 

Inda o teu coração ardente e puro

Como a fênix das cinzas pode erguer-se

E ungir-se com os bálsamos celestes,

E no Jordão do amor inda embeber-se!

 

Inda os mágicos sonhos de ventura

Podem embalsamar-te as primaveras

E num culto platônico e fervente

Querer-te um coração e amar deveras!

 

Ergue-te pois! vem perfumar tua alma

Com as rosas festivas dos amores,

E dourar minhas crenças fugitivas

Com a luz de teus olhos sedutores.

 

Vem! é tão doce amar nas noites belas!

Vem remir-te no amor, anjo do Deus!

Hão de os meus beijos aquecer-te a fronte,

E as brisas desmaiar nos seios teus!

 

 

 

ESPERANÇA [66]

 

No álbum do Sr. F. G. Braga

 

Pobre romeiro da poente estrada,

Cantei passando pelo val da vida

       Ao sopro do aquilão

Ouvi-te um canto. Minha voz cansada

Vem modular-te a saudação sentida,

       Como de irmão a irmão!

 

Aos sons acordes da tua harpa ardente

Venho juntar uma canção saudosa

       Deste alaúde em flor...

A poesia é um dom onipotente;

Não desmintamos a missão gloriosa, 

       Profetas do Senhor!

 

Beijarei essa túnica sagrada

Que sobre os ombros o Senhor te dera

       Como um manto real;

Irei contigo do porvir na estrada,

Onde rebenta em flor a primavera

       Das pontas do espinhal.

 

Irmão de crença! eu irei contigo

Sonhar nas tendas que ao passar entrarão

       Extintas gerações;

Rezarei junto a ti no altar antigo,

Onde muitos outr’ora ajoelharão

       Em salmos e orações.

 

Quando o porvir em fúlgido horizonte

Estende-se arraiado de venturas

       E convida a esperar,

Deve-se erguer de entusiasmo a fronte,

Venha embora o luar das sepulturas

       A esperança gelar!

 

O sonho em que o espírito se embala

Vem do céu como angélico segredo

       À fronte do cantor;

Mas precoce o coração estala

É que Deus julgou bem erguê-lo cedo

       Para um mundo melhor!

 

Sonhemos pois! Meu tímido alaúde

Da tua harpa unirei à nota ardente

       Em uma só canção

Este afeto fraterno é uma virtude,

Deixo-te aqui a saudação de um crente

       Como de irmão a irmão.

 

 

 

A MISSÃO DO POETA [67]

 

No álbum do Sr. João Dantas de Sousa

 

                                                  Musa

Vês, meu poeta, em torno estas colinas,

Como tronos gentis da primavera?

Abrem-se ali as pálidas boninas,

E em volta dos cipós se enrosca a hera!

É o sol-posto. — A folha, o mar, e o vento,

Tudo murmura de saudade um hino.

Vem sonhar neste morno isolamento.

E dormir no meu seio peregrino!

 

                                                  Poeta

Vemos, sim! — Esta noite o luar saudoso

Há de tremer nestas folhagens belas.

Tão só vegeto! — O alaúde ansioso

Vem enfeitar de angélicas capelas!

Pousa-me a fronte em tuas mãos celestes...

Mas é uma ilusão... cruel mentira!

Hei de ao soar do vento nos ciprestes

Erguer num canto as vibrações da lira...

 

                                                  Musa

Sofrer, qu’importa? — Vem! Morrem as dores

Da solidão nos recônditos mistérios!

Nascem à bordo do sepulcro as flores,

E beija o sol o pó dos cemitérios.

 

                                                  Poeta

Eu sofro tanto! — Perenais espinhos

Orlam-me a estrada.... A sepultura é perto!

E nem o doce aroma dos carinhos...

Meu Deus! Nem uma flor neste deserto!

E quantos desta doida caravana

Estorceu no areal uma agonia,

Esperando debalde em noite insana

Verem realizar-se uma utopia!

 

E como crer então? Tenho aqui morta

Uma ilusão de minha primavera...

O sonho é como um feto que se aborta,

Um porvir que se ergueu numa quimera!

 

A realidade é fria. Erga-se embora

A flor do coração a um céu dourado,

Vem a turba maldita em negra hora,

E as flores mata de um porvir sonhado!

 

                                                  Musa

Por que descrer assim? — É dura a estrada,

Mas há no termo muito amor celeste,

A glória, poeta, é uma flor dourada,

Que só nasce da rama do cipreste.

 

                                                  Poeta

De um cipreste!... É bem triste esse conforto!

Quem sabe? uma esperança mal cabida.

Essa luz que se vaza sobre o morto

Paga-lhe a dor que o sufocara em vida?

 

                                                  Musa

Mas é tua missão,... Do pesadelo

Hás de acordar radiante de alegria!

Deus pôs na lira do infortúnio o selo,

Mas há de dar-lhe muita glória, um dia!

 

É forçoso sofrer... Deus no futuro

Guarda-te a c'roa de uma glória santa,

Vem sonhar, este céu é calmo e puro!

Vem, é tua missão!... Ergue-te e canta!

 

 

 

O PROGRESSO [68]

 

Hino da mocidade

 

Ao St E. Pelletan.

 

Eppur si muove

 

Ao som da tua voz a mocidade acorda,

E olha ousada de face os piamos do porvir!

Eia! rebenta a flor da longa estrada, à borda,

E através do horizonte há uma aurora a rir.

 

E sempre a mesma aurora a rir de era em era.

E sempre a estrada augusta a rebentar em flor!

Salve, fértil, gentil, rosada primavera!

Eterno resvelar do melhor ao melhor!

 

A mocidade ergueu-se. Um século dourado

Veio ao berço gentil inocular-lhe a fé;

E na orla a luzir do horizonte azulado

Mostrar-lhe como um sol a verdade de pé!

 

A verdade! está aí fecunda, onipotente,

Nossa estrela polar, e bandeira, e troféu!

Sim! o mundo caminha a um pólo atraente,

Di-lo a planta do vai, di-lo a estrela do céu!

 

Ao som da tua voz a mocidade acorda,

E olha ousada de face os plainos do porvir!

Eia! rebenta a flor da longa estrada à borda.

E através do horizonte há uma aurora a rir!

 

Que tal? que nos importa essa idéia sem fundo

Que estaciona e prende a humanidade ao pó?

Fala mais alto, irmãos, este avançar do mundo

E toda a natureza em um canto, num só!

 

Fala mais alto, irmãos, a ardente humanidade!

Marchando a realizar uma missão moral;

pregando uma lei, uma eterna verdade,

Do progresso subir a mágica espiral.

 

Sim! romeira gentil aos séculos se enlaça!

Na escala do progresso ela não se detém!

Uma herança moral corre de raça a raça,

Se ela desmaia aqui, vai triunfar além!

 

Ao som da tua voz a mocidade acorda,

E olha ousada de face os plainos do porvir!

Eia! rebenta a flor da longa estrada à borda.

E através do horizonte há uma aurora a rir!

 

Eia! num canto ardente erga-se ousada fronte!

Doure esta caravana um límpido arrebol!

Creiam, embora a luz a nascer do horizonte

Crepúsculo sombrio e desmaiar do sol!

 

Creiam-no. Um astro se ergue em céu dourado e puro

E nos mostra com a luz terra de promissão!

Cerramos sem temor, obreiros do futuro!

A verdade palpita em nosso coração!

 

Soa em nossa alma ardente um grito entusiasta

E às barreiras do tempo uma voz diz: — Passai!

Morte ao lábio sem fé que nos murmura: — Basta!

Gloria a vós festival que nos exclama: — Vai!

 

Ao som da tua voz a mocidade acorda,

E olha ousada de face os plainos do porvir!

Eia! rebenta a flor da longa estrada à borda,

E através do horizonte há uma aurora a rir!

 

 

 

À ITÁLIA [69]

 

Despe esses ferros de dormente escrava,

Que o sol dos livres no horizonte vem!

Velha cratera — o referver da lava

Atento e curvo todo um século tem.

 

Acorda! o sono da opressão devora!

Pátria de Roma — o Capitólio vê!

Pálida Itália — ressuscita agora

O ardor nos peitos — na esperança a fé.

 

A velha Europa ao teu arfar cansado

Vem debruçar-se em derredor aí;

E ao som valente do primeiro brado

Braços e espadas acharás por ti.

 

Apenas bata essa esperada hora

O anjo dos livres se erguerá de pé.

Pálida Itália — ressuscita agora

O ardor nos peitos — na esperança a fé.

 

O século é belo. A liberdade canta —

Virentes rosas sobre os seios nus!

Feto sublime de uma idéia santa

Vem no horizonte por um mar de luz!

 

Morte ao opresso que a tremer descora

E à luz nascente deste sol — não crê!

Pálida Itália — ressuscita agora

O ardor nos peitos — na esperança a fé.

 

Ontem a Grécia, como um sol caído,

Toda nas águas afogará a luz;

Das meias-luas o pendão temido

No ilustre solo lhe esmagará a cruz.

 

Um brado ergueu-a. Como estava outrora,

Da Europa à face levantou-se em pé.

Pálida Itália — ressuscita agora

O ardor nos peitos — na esperança a fé.

 

Página bela da grandeza antiga,

Tens inda o selo de um real poder;

Os rijos copos dessa espada amiga

A mão do tempo não quebrou sequer.

 

A rubra púrpura de reinar de outrora

Hoje uma toga popular não é?

Pálida Itália — ressuscita agora

O ardor nos peitos — na esperança a fé.

 

A idéia é fogo que ateado lavra.

E tudo abrasa nessa ardente ação.

Rompe, desprende essa fatal palavra;

Outras cativas erguerás do chão.

 

Olha a Polônia escravizada chora:

E o sol dos livres inda espera e vê.

Pálida Itália — ressuscita agora —

O ardor nos peitos — na esperança a fé.

 

Ao braço impuro de opressor ingrato,

Bela cativa, não te curves, não!

Da liberdade o sentimento inato

E um incentivo na tremenda ação.

 

Não, não consintas, tu liberta outrora

Sobre teu colo levantar-se um pé.

Pálida Itália — ressuscita agora

O ardor nos peitos — na esperança a fé.

 

Levanta as tendas. Uma onda brava         

Quebrar-te os ferros pelo mar i vem!

Velha cratera — o referver da lava

Atento e curvo todo um século tem!

 

Acorda! O sono da opressão devora!

Pátria de Roma — o Capitólio vê!

Pálida Itália — ressuscita agora

O ardor nos peitos — na esperança a fé.

 

 

 

A UM POETA [70]

 

O Sr. P. de Sales Guimarães e Cunha

 

Non é perduta

Ogni speranza ancor

 

METASTÁSIO

 

Poeta, beija a poeira

Destes ásperos caminhos

E cinge alegre os espinhos,

Heranças que o gênio tem.

O alaúde é dom funesto.

Quando uma fronte é fadada

Pela pálpebra inspirada

Debruçar-se ao pranto vem!

 

E o pobre gênio passando

Por noite tempestuosa

De uma espiral escabrosa

Sobe os ásperos degraus;

E o anjo dos pesadelos,

As negras asas abrindo.

Vai embalá-lo sorrindo

Num berço de sonhos maus.

 

E todo um mundo criado

Nas ondas da fantasia

Um sopro de ventania

Desfaz por noite fatal!...

Os olhos sangram na sombra

Um pranto desesperado,

E o gênio morre abraçado

Na cruz do seu ideal.

 

Irmão! é sangrenta a sina,

Mas os louros valem tanto...

Cada uma gota de pranto

E uma póstuma flor.

As brisas da primavera

Vêm depois do inverno frio,

E é sempre por céu sombrio

Que nasce aurora melhor.

 

Fatalidade! — Qu’importa?

Deus nos deu esse fadário...

Mas no cimo do Calvário

Há muita palma a florir,

Toma o madeiro do Cristo,

Beija os espinhos da fronte,

E verás pelo horizonte

Erguer-se o sol do porvir.

 

 

 

A PARTIDA [71]

 

Entretanto o céu se levanta sereno

E pomposo corno para um dia de festa.

 

LACRETELLE

 

Vês? No horizonte se debruça a aurora

       Como um infante a rir;

As flores vão abrir-se: o luar se apaga;

Começa a vida; douram-se os outeiros...

       Ai! e tu vás partir!

 

Partir quando este céu fulgia aos beijos

       D'ignoto querubim!

Manhã do coração toldou-me o ocaso!

Nuvem negra por céu de madrugada,

       Ou eça em seu festim!

 

E por que enviuvar das esperanças

       A rebentar em flor?

Por que rasgar uma por uma as folhas

Da rosa da ventura embalsamada

       Por um luar de amor!

 

Tu eras de meus sonhos de poeta

       O beija-flor azul...

Eu te quisera, se te visse embora

Rotas as asas por noturno vento

       Nos lodos do paul...

 

Eu te quisera inda a azular as pálpebras

       A insônia dos festins.

Dera-te em cantos um dourado busto;

Do meu amor no seio dormirias

       o sono dos querubins!

 

Eu era como o quebro ajoelhado

       Ante o sol a nascer...

Madona amorenada de meus cultos,

Ergui-te unia ara e no calor dos joelhos

       Não te dormi sequer!

 

E tu passaste adormentada e bela

       Num berço de cristal;

Meu céu se iluminou por um momento,

Veio a realidade escura e fria,

       Foi-se, foi-se o ideal!

 

Passou como um fantasma essa aventura

       Criada em tanto afã.

E como o cactus que à noitinha abrira

Asa de ventania perfumada,

       Morreu de antemanhã!

 

Morreu sem sol a pobre flor dourada

       Dos sonhos meus e teus!

Morno ideal de tanta insônia ardente

Que uma noite dormira embalsamado

       No infinito de Deus.

 

Eterno vacilar da morte à vida,

       Sorte da criação!

Sempre o verme onde a seiva se derrama.

Onde a vida palpita e ri mais verde.

       Sempre a destruição!

 

É uma lei... Mas a esperança resta

       No feto do porvir...

Talvez bem cedo o dia se levante,

E a noite sacudindo o luar das tranças

       Descanse e vá dormir.

 

Mas, tarde ou cedo que esse dia se erga

       E volte a rir assim,

Durma meu nome no teu seio de fogo;

Não desfolhes os lírios da lembrança

       Ai! lembra-te de mim!

 

 

 

A REDENÇÃO [72]

 

Ao Sr. Dr. Francisco Otaviano

 

I

 

E Deus disse ao espírito incriado:

       Desce na asa do vento;

Por entranhas humanas — encarnado

       Dormirás um momento.

 

Lá te espera nos limbos palpitantes

De dura escravidão — a humanidade,

Prega a essas nações agonizantes

       O dogma da igualdade!

 

Leva a casta virtude foragida

       Entre virentes palmas;

E vai mostrá-la à multidão perdida

       Como o pudor das almas.

 

Vai, meu Cristo — a missão é escabrosa;

Só terás dessas turbas em carinhos

Uma cruz — uma vida dolorosa

       E uma c'roa de espinhos.

 

E descera o espírito incriado

       Sobre a asa do vento,

E em seio virgem de mulher — fechado

       Foi dormir um momento.

 

II

 

Era o sonho dos profetas

Que se encarnara em Jesus;

Daquelas eras provetas

A cara e esperada luz.

Profeta, da liberdade,

Cireneu da humanidade.

Que vinha tomar-lhe a cruz!

 

A humanidade o esperava

Nos sonhos de redenção;

Ele vinha erguer a lava

De um velho morno vulcão.

Missão de ventura e graça

Que fecundava uma raça

De que ele era novo Adão!

 

Era o Íris da bonança

No meio dos temporais

A verbena da esperança

Entre desânimo e ais.

Um sol vigoroso e ufano

Rasgando ao gênero humano

Um horizonte de paz.

 

Não teve Moisés augusto

Mais auréola de luz

Nem um brado mais robusto

A voz do poeta Ilus

Tu foste — Belém proveta

— Berço de um maior profeta

Sacrificado na cruz!

 

Batera a hora na ampulheta eterna,

E esse fato de um Deus que se agitava

No seio da fecunda humanidade

Surgira à luz. A natureza toda

Estremeceu e se arraiou mais bela!

Mas linda a flor dos campos nessa noite

O seio abrira. — No seu leito o homem

Nessa noite sentiu mais puros sonhos

Por sua mente revoar... E as almas

Que esta terra de abrolhos — maculará

Sentirão todas — um chuveiro de ouro

 

Vazar nas trevas de enlodados limbos!

E depois - no horizonte azul-escuro

Clara estrela raiou — estranha aos homens

Reis, a pé! — Ide além a um berço humilde

Depor as c'roas... é um rei mais sábio

Que nasceu na humildade e na inocência!

Viajor — que vingas a colina alpestre

Às frias virações da meia-noite,

Pára! — Uma aurora súbito se entorna

Por este céu — e aquela estrela branca

Que vês correndo no horizonte oposto

É a coluna de fogo do deserto

Que outrora o povo de Israel guiara!

É o astro polar que a humanidade

Há de levar à prometida terra,

Para que ela marche na impulsão dos séculos.

Foi assim que o profeta dos profetas,

O circunciso, apresentou-se aos homens!

Nem Roma em seus delírios de triunfo

O nascimento lhe obstava... Aos ombros

Trazia a toga das virtudes castas;

E o ideal da igualdade sobre a fronte

Era a divina, grandiosa auréola

De que vinha cingir a humanidade!

Que deu a terra ao salvador dos povos?

Uma cruz... uma vida dolorosa,

Uma c'roa de espinhos!

 

III

 

Dormes, Jerusalém? Morno ossuário

Deitado à sombra de fatais lembranças

       Num leito secular,

Não sentes que no altar do teu calvário

O gérmen de verbenas e esperanças

       Começa a rebentar?

 

Essa lenda de pranto e de amargura,

Esse drama da cruz e do calvário

       Escárnio e a aflição:

Esses delírios de uma treva escura,

Esse fel e vinagre e esse sudário:

       Foi tudo a redenção!

 

A redenção... A turba delirante

Nem pressentiu essa missão divina

       Do filho do Senhor...

E selou num delírio agonizante

Aquela fronte casta e peregrina

       Com o sinete da dor!

 

Deu-lhe a palma e coroa de realeza,

Sentou-se sobre um marco de granito

       E a zombar o saudou!

E o Cristo, essa divina singeleza,

Nem um olhar lançara, nem um grito

       Arquejante soltou.

 

Ide, marchai sangrenta caravana!

Cireneu, vem agora e dá teu braço

       Pra ajudar a cruz.

Cantai, cantai por essa orgia humana!

A terra treme e se enegreja o espaço,

       E o sol desmaia a luz!

 

Essa cruz, esse poste de suplício,

Em que o cordeiro pálido imolaste

       Nas raivas infernais,

Se erguerá como o sol do sacrifício;

Brotarão dos espinhos que entrançaste

       Perpétuas festivais!

 

Dia mais belo vazará do oriente,

E a noite de verão mais vaporosa

       Nos vales dormirá...

Nas asas de planeta onipotente

Uma luz mais suave e mais formosa

       Aos povos descerá...

 

Sim! é fecundo o sangue do calvário!

Se o Cristo agonizou daquelas dores

       Muita palma nasceu!

Daquela cruz e pálido sudário

Um éden de perfume e de flores

       Teremos por troféu!

 

Assim fechou-se a redenção dos povos!

Do drama do calvário - a humanidade

Uma c’roa viril teve em herança

Mais bela do que as cívicas coroas

       De Roma — a triunfante:

       A c'roa da igualdade!

 

Esperai! se essa palma de triunfo

Começa ainda a rebentar do Gólgota,

Não estão longe os tempos — em que a fronte

Há de ovante cingi-la à humanidade!

Assim o passo derradeiro e firme

A Canaã da paz será transposto;

Assim a cruz triunfará eterna,

Assim se fecha a redenção dos povos!

 

 

 

S. HELENA [73]

 

Ao Sr. Remígio de Sena Pereira

 

Cairão Ajax e suas frotas!

 

HOMERO — Odisséia

 

Sobre a escarpada rocha — levantada

Na vaga — como um túmulo marinho,

       Sob eterno luar,

César — desce como águia derrubada!

No seio agora desse estéril ninho

       É força repousar!

 

Dorme, crânio viril, dorme um momento!

Tens ali um sepulcro de granito

       Eça de Briareu!

Como caído sol — teu pensamento

Vague agora — no mar desse infinito

       Em meio de água o céu!

 

As eras de ventura lá passaram

Como frotas no mar. Impetuoso

       Soprara o furacão!

As mornas tradições é que ficaram,

Que aquele mesmo gênio belicoso

       Não voltará mais, não!

 

Já não ressoam os clarins da guerra!

E os bravos desse Homero das batalhas

       Descansam a dormir!

Essa cruzada que assombrara a terra

Sob as ruínas de pálidas muralhas

       E a força cair!

 

Caiu! Assim o quis o destino infausto,

Que a estrela de seus largos horizontes

       Nos limbos despenhou!

Caiu! mas em homérico holocausto!

Sol moribundo erguido em mar de frontes

       Um dia descambou!

 

Dorme agora — na rocha levantada,

César, sobre esse túmulo marinho

       É força repousar!

És agora como águia derrubada!

Resta-te um derradeiro e estéril ninho

       E um eterno luar!

 

Foi esta, Bonaparte, a nênia augusta

Com que saudou-te a humanidade a queda!

Descaída a realeza das batalhas

Tinha como um apoio derradeiro

Um alpestre rochedo. Em torno o oceano

Era como que a firme — sentinela

De um oceano subjugado agora!

Folga, Albion! A espada onipotente

Desse rei dos combates e das tendas

Não vergaste, quebrou! A tua glória

Era preciso que ao condor hercúleo

Um vento bravo despenhasse as asas!

 

Agora, Bonaparte, eis-te sentado

Sobre a escarpada rocha

Que ao corcel dos combates sucedeu!

Essa fronte que o gênio das conquistas

Afogou num abismo das batalhas

Tem agora por troa derradeira

Uma nuvem de pálidas lembranças!

Tudo, tudo passou! os dias belos

       Os dias de Marengo

De Arcole, de Montmirail e de Austerlitz,

Lá vão! passaram como as folhas secas

Sacudidas do vento das florestas!

 

Passaram! resta o sudário

Do pesado esquecimento!

Resta o pálido ossário

De todo um mundo portento.

 

As cruzadas peregrinas

Moderno César não vens?

Por palmas capitolinas

Capelas de goivos tens?

 

Como Lázaro, acordaste

A humanidade dormente;

Que um povo de reis, fecha

Sob a mão onipotente.

 

E tu, que no berço ungiste

A infante revolução,

E toda a submergiste

Em um mais puro Jordão;

 

Que herdaste? um bronco rochedo

Onde a vaga geme a medo

Ouvindo — Napoleão!

 

 

 

NUNCA MAIS [74]

 

Quand je t'aimais, pour toí j'aurais donné ma vie

Mais c'est toi, de t'aimer, toi qui m'ôtas l'envie.

 

ALFRED DE MUSSET

 

Nunca mais! O sol de outrora

Treva súbita apagou;

Já o fogo não devora

Onde a geada passou.

 

Esse passado morreu,

Que eu julgara então eterno,

E agora esqueci o inferno

Para lembrar-me do céu...

 

Não! dessa alma prostituta

Nem mais quero uma afeição!

Caíste — venci na luta,

Sem perder o coração.

 

Sangra os olhos no chorar,

Nova Agar — no teu deserto,

Que eu agora, audaz liberto,

Nem sei, nem te posso amar!

 

Caíste! não te detesto;

Não te cabe o ódio a ti.

Seria o pulsar de um resto

Desse afeto que eu perdi.

 

Sobre esse altar que te dei

Noutras eras peregrinas,

Como em leito de ruínas

Novo Mário — me assenti!

 

Ficou-me a alma viúva

De muita ilusão gentil;

Como exposta ao vento e à chuva

Flor que deu sobre de abril.

 

Mas a fria e curva flor

Já não treme assim pendida;

Ergue-a mais ardente vida

Por madrugada melhor!

 

Tu, caminha — vai jornada

Da vaidade e perdição;

E batiza a alma danada

Em lutulento Jordão.

 

Um dia sem luz nem voz

Vergarás no teu caminho

E verás, ave sem ninho,

Como punge espinho atroz.

 

 

 

A CH. F., FILHO DE UM PROSCRITO [75]

 

II est beau. Dans son front où la grâce rayonne,

II porte tout un monde embaumé, pur et gai.

La nature y étale une fraîche couronne;

C'est la molle beauté des blanches fleurs de mai.

 

Au matin de son jour il ouvre sa paupière,

Où se berce en dormant son délicat esprit,

Aux baisers de l'amour, aux regards de sa mère,

À tout ce qui lui parle et lui chante et lui rit.

 

Un charmant avenir l'attend, là-bas, peut-être,

Au couchant de ce siècle oú tout parle et combat,

Qui sait? Dans le moment où l'enfant vient de naître

L'oppression pâlit — l'ostracisme s'en va...

 

Eh bien! fils de proscrit — est un coeur plein de flammes

Qui te parle penché dans ton ciel adorant:

Tu seras un croisé dons le combat des âmes;

C'est moi qui le prédis — moi, tête de vingt ans!

 

 

 

OFÉLIA [76]

 

A J...

 

Meu destino é um rio do deserto

       A murmurar-me aos pés;

Veia nascida em urna noite amarga,

As bordas são de areia, a onda é larga

       E loucas as marés.

 

Tem as águas azuis, — mas são profundas

       Naquele murmurar,

Correm aqui como a falar segredos

Sobre leito de lodo e de rochedos

       A um ignoto mar!

 

Pálidas flores que uma vaga incerta

       Ali suspensas traz

Vicejam aos borrifos, do meu pranto.

Oh! essas flores que te prendem tanto

       Deixa-as, Ofélia, em paz!

 

Não te curves à borda dessas águas

       De superfície anil,

Ébria de amores, — do teu sonho casto

Não acharás ali o mundo vasto

       Nem o rosado abril.

 

Deixa essas flores; uma onda as leva

       Onde? Nem mesmo eu sei!

Deixa-as correr, — festões de meu destino;

Passa cantando, meu amor, teu hino,

       A que eu te abençoarei.

 

Atado à pedra que me leva, um dia

       A queda suspendi.

Vi-te à margem das águas debruçada

A paixão dos meus sonhos, — tão sonhada

       Vi-a, encontrei-a em ti.

 

Maga estrela pendente do horizonte

       E curva sobre o mar

Vieste à noite conversar comigo;

Mas a aurora chegou — ao leito antigo

       Vai, é mister voltar.

 

Deixa-me, não te curves sobre as flores

       Deste leito de azul;

Molhastes os teus vestidos, foge embora!

Não te despenhes, — vem o mar agora

       Encapelado ao sul.

 

Enxuga agora ao sol as tuas roupas

       E deixa-me seguir;

Não sei qual a torrente que me espera;

Vai, não prendas a tua primavera,

       Onde é fundo o porvir!

 

 

 

A ESTRELA DA TARDE [77]

 

A estrela da tarde sorri desmaiada

No azul embalada de um fogo vital:

Que luz vaporosa nos belos palores!

Que facho de amores! que flor de cristal!

 

Murmura nas praias a vaga indolente

Um véu transparente se estende no ar;

Os silfos se fecham no seio das rosas

E as brisas saudosas murmuram: — amar!

 

Estrela do ocaso, é a hora. Bem-vinda!

Que aurora tão linda, tão doce que tens!

A terra desmaia nos braços do gozo,

E um doce repouso lhe entorna mil bens!

 

Bem-vinda! aos amores que mágico ensejo!

Desperta o cortejo dos astros do céu.

Estrela das sombras, etéreo portento,

Nas asas do vento — desdobra o teu véu.

 

Vem, que eu te saúdo dormente do acaso;

Esplêndido vaso de um novo fulgor,

Às almas que o fogo da terra queimara

Tu és como a ara de crenças e amor.

 

Meu lábio secou-se no sol do deserto,

Nem fonte aí perto! cruenta aflição!

Passei tateando nas sombras da vida

Como ave caída nos lodos do chão!

 

A taça dourada do amor e ventura

Achei-a bem pura — mas não a bebi,

Do éden da vida rocei pelas portas:

As mãos eram mortas; ninguém veio ali,

 

Passei; fui sozinho no longo da estrada;

A noite pesada descia sem luz,

Segui tropeçando num frio sudário;

Agora um calvário, mais tarde uma cruz!

 

Estrela! cansado das lutas, vencido,

Dos sonhos descrido, ressurjo, aqui estou!

O manto da vida cai-me aos pedaços

Recose-me aos braços que o frio engelou.

 

São crenças que eu peço de um gozo celeste;

No tronco ao cipreste — rebentos de flor;

Aos prantos que choro mais rir de doçura,

Mais pão de ventura, mais sonhos de amor!

 

Estrela! — é a hora do gozo — desperta!

Uma alma deserta palpita de amar,

Vem, loura do ocaso, falar-me em segredo,

Não fujas, é cedo; não caias no mar.

 

 

 

A UM PROSCRITO [78]

 

É um canto de irmão. Crispam meus lábios

Entusiasmado, convulsões cruéis!

Toma esta lira; consagrei-a aos bravos;

Não na mancharam saturnais de escravos,

       As opressões dos reis.

 

Uma idéia vital pulsa-lhe as cordas;

Elas palpitam na ovação de heróis!

Minha musa tem fé, arde-lhe inata;

A mão que antes selará insensata

       Não beijará depois.

 

Má espera! essas nuvens de tormenta

Vai rasgar o clarão de um novo sol!

A hora bateu às velhas monarquias;

Da nova geração, dos novos dias,

       Já se tinge o arrebol...

 

Os reis tiritarão entre os sudários

Quando essa aurora em novo céu fulgir;

A idéia pousará nos santuários;

E os povos se erguerão sobre os calvários

       Aos cantos do porvir.

 

Eu te saúdo, espírito sem peias,

Que não gostaram cortesãos festins!

Proscrito errante que sustaste o pranto,

E sentiste e velaste o fogo santo

       Que velaram Franklins.

 

Eu te saúdo, coração fervente,

No apostolado da missão do céu;

Que sentes no teu horto — atroz miséria!

Despedaçar-te artéria por artéria

       O corvo de Prometeu!

 

Dez anos! Longe o lar de teus afetos!

Dez anos de cruenta proscrição!

O horizonte da pátria vai fechado;

A teus pés que infortúnio de exilado

       Rebentam desse chão!

 

Longe! bem longe a opressão lançou-te...

Miséria, nem coragem de lutar!

Um dia despertaste enfim proscrito;

Como o viajor da lenda ergueu-te um grito:

                         — Caminhar! caminhar!       

 

Foste vencido... era forçoso aos tronos!

Mas caindo, caíste vencedor,

Mais alto do que então inda te erguias;

Glória a ti nessas rudes agonias,

       Vergonha ao opressor!

 

Glória a ti, cujos lábios não cuspiram

Da alma guardaste as roupas de vestal!

Vergonha ao opressor, corvo sedento,

Que rasga sem piedade de um lamento

       A águia nacional!

 

Glória a ti, cujos lábios não cuspiram

Da liberdade no lustral Jordão

A água desse batismo é-nos sagrada;

Vergonha ao que na fronte batizada

       Selou de proscrição!

 

 

 

SONHOS [79]

 

Oh! si elle m'eût aimé!

 

A. DE VIGNY

 

Se ela soubesse por que tremo às vezes

Como um junco nas bordas de um regato;

E àquele olhar de uma volúpia ardente

Fecho os meus pobres olhos de insensato.

 

Se ela soubesse por que a mão convulsa

Sinto ao pousar em um adeus a sua;

E por que um riso de amargura e tédio

Pousa-me no calor da face nua;

 

Quem sabe se piedosa, no silêncio,

Em oração, à noite, me alembrara;

E por mim em meu êxtase querido

Uma furtiva lágrima soltara!

 

Quem sabe, se amorosa, pensativa,

Amadornada em lânguidos desejos,

Viria compulsar-me o livro d'alma

E minha fronte batizar de beijos...

 

E saberia então que de soluços

Os lábios me entreabrem de paixão!

Que de prantos resvalam de meus olhos,

Com o orvalho de minha solidão!

 

Veria que este fogo de meus versos

É a febre de amor de meus suspiros,

Onde me vai a flor da mocidade

Como flor que enlanguece nos retiros.

 

Mas... são sonhos, meu Deus! estes tormentos

Irão comigo resvalar na cova;

E serão o crisol de meu espírito

Quando passar a uma existência nova.

 

Sonhos de insensatez! delírio apenas!

Cresceu em alta rocha a flor querida;

Verme rasteiro tateando os ermos

Não beberei naquele seio — a vida!

 

Passarei como sombra ante os seus olhos.

Frios, sem eco — soarão meus cantos;

E aqueles olhos que eu amei, calado

Não me hão de as cinzas orvalhar com prantos!

 

E nos silêncios de uma noite límpida

Sobre a campa que me há de enfim cobrir.

Da flor daqueles lábios — uma reza

Como um perfume não virá cair!

 

Devanear eterno! o amor de louco

Hei-de fechá-lo na mudez do peito...

Vem tu, apenas, lânguida saudade,

Noiva dos ermos — partilhar meu leito!

 

 

 

UM NOME [80]

 

No álbum da Exma. Sra. D. Luísa Amat

 

Dormi ébrio no seio do infinito

Ao fogo da ilusão que me consome;

A lira tateei na treva... embalde!

Nem uma palma coroou meu nome!

 

Os meus cantos morrerão no deserto,

Quebrou-me as notas um noturno vento,

E o nome que eu quisera erguer tão alto

No abismo há de cair do esquecimento.

 

Sou bem moço, e talvez uma esperança

Pudesse ainda me despir do lodo;

E ao sol ardente de um porvir de glórias

Engrandecer, purificar-me todo.

 

Talvez, mas esta sede era tamanha!

E agora o desespero entrou-me n'alma;

A brisa de verão queimou-me passando

A jovem rama da nascente palma!

 

E esse nome, esse nome que eu quisera

Erguer como um troféu, tornou-se em cruz;

Não cabe aqui, senhora, em vosso livro.

Pobre como é de glórias e de luz.

 

Mas se não tem as palmas que esperava.

Filho da sombra, em jogo de ilusões.

Vossa bondade, a unção das almas puras,

Há de dar-lhe a palavra dos perdões!

 

 

 

TRAVESSA [81]

 

Ai; por Deus, por vida minha

Como és travessa e louquinha!

Gosto de ti — gosto tanto

Dessa tua travessura

Que não me dera o meu encanto,

Que não dera o meu gostar,

Nem por estrelas do céu.

Nem por pérolas ao mar!

Alma toda de quimeras

Que acordou no paraíso

Vinda do leito de Deus;

E que rivais de teus olhos

Só tens dois olhos — os teus!

Pareces mesmo criança

Que só vive e se alimenta

De luz, amor e esperança.

Ave sem medo à tormenta

Que salta e palpita e ri,

As travessas primaveras

Assentam tão bem em ti!

Assentam sim, como as asas

Assentam no beija-flor,

Como o delírio dos beijos

 

Em uma noite de amor;

Como no véu que se agita

De beleza adormecida

A brisa mole e sentida!

 

Foi por ver-te assim — travessa

Que eu pus a minha esperança

No imaginar de criança

Dessa formosa cabeça...

Foi por ver-te assim — Que os sonhos

Eu sei como os tens eu sei.

Puros, lindos e risonhos.

Um coração novo e calmo

Onde a lei do amor — é lei;

Foi por ver-te assim, que eu venho

Pôr em ti as fantasias

De meus peregrinos dias.

Como a esperança no céu:

Em ti só, que és tão louquinha,

Em ti só pôr a minha vida!

 

 

 

A D. GABRIELA DA CUNHA [82]

 

Pára! Colhe essas asas um instante;

Olha que senda decorrendo vens!

Pára! é o marco final do caminhante,

E mais espaços a vencer não tens!

 

Lembra as visões e os sonhos do passado...

Vão longe, longe — quando, artista em flor.

Nem tinhas o caminho calculado,

Que mais tarde devias de transpor.

 

Contaste acaso em tua mente outrora

Tantas coroas futuras e troféus?

Sonhaste uma vez erguer-te agora

Alto, tão alto, pela mão de Deus?

 

Não pudeste medir todo este espaço,

Nem pudeste pensar que um dia, aqui

Viria o povo, em um festivo abraço

Sagrar-te os louros triunfais, a TI.

 

Foi surpresa do gênio — e do destino

Que a tua senda de futuro abriu,

E que uma folha de laurel divino

Em tua fronte pálida cingiu.

 

Talvez de artista no teu largo manto,

Como gotas de sangue em níveo chão.

Noite de espinhos orvalhou com pranto

E mareou de dor muita ovação.

 

Faz uma flor de cada espinho acerbo,

Tira de cada treva um arrebol;

Para fazê-la — abre os teus lábios, VERBO!

Para tirá-la — abre os seus raios, SOL!

 

 

 

MEUS VERSOS [83] 

 

Quando nas noites de luar de outono

Pendem as flores que a manhã crestara

       E a chuva desbotou,

Que mão piedosa ergueu-as do abandono...

E cuidadosa no seio as orvalhara?

       Que sorrindo as beijou?

 

Elas morrem ali tristes, sozinhas,

E se desfolham no correr do rio...

       Deus sabe onde elas vão!

Assim morrem ao sol as andorinhas,

Assim o inseto se desmaia ao frio,

       E assim meus versos são!

 

Pobres canções que eu entoara a custo,

E modulei nas harpas dos amores

       Que ornara um querubim.

Foram as vibrações de um sonho augusto;

Da minha fronte as suspiradas flores

       Não mas dera o jardim.

 

E contudo eu ainda as esperava,

Como à porta do Céu a mãe cuidosa

       Um filho que há de vir.

E o jardim não mas dera; eu mal cuidava

Que vinha no embrião da flor mimosa

       Um áspide dormir.

 

Acordei! Esqueci-me dessas flores

E vou cantando sem sonhar venturas

       Já sem ilusão.

Deixo aqui minha lenda dos amores

Urna singela de esperanças puras,

       E muita aspiração.

 

 

 

A MME. DE LA GRANGE [84]

 

Quando em teus lábios a harmonia corre,

Como os verbos das almas e do amor,

Um mundo de douradas fantasias

Ao coração dormente se abre em flor.

 

Solto dos elos da matéria — o espírito

Num céu que de harmonia se perfuma

Adormece nas harpas do teu peito

E as tuas notas bebe urna por uma.

 

Missão divina! Traduzir na terra

As linguagens do céu! Vibrar cantando

Do sentimento as palpitantes fibras!

E o pranto às almas rebentar chorando!

 

Talhou-te larga a púrpura do gênio

A mão severa e pura dos destinos,

Imprimiu-te na voz a harpa de um século

E a alma te encarnou em sons divinos!

 

Depois — na ara da pura melodia

Desceste em uma noite embalsamada;

Segue na rota da missão divina,

Canta, murmura, lânguida, inspirada!

 

Abre os vôos, parte agora!

Vai, cantora, ao teu destino:

Destas últimas vitórias

Vês? As glórias aqui pus.

Cinge a c’roa e torna arminhos

Os espinhos que colheste;

Que os teus hinos são melhores;

Fazem flores de uma cruz!

 

 

 

SOUVENIRS D'EXIL [85]

 

(tradução de poema de CHARLES RIBEYROLLES)

 

Flor a abrir entre nós, surge agora um infante;

Fronte loura a sorrir em nossa proscrição,

Os numes vêm cercá-lo em seu berço galante,

E para erguê-lo ao céu todos lhe abrem a mão.

 

Mas ele que será? Calvinista ou romano?

Ou turco, ou querubim de Lutero, ou judeu?

E que santo do céu a este lírio humano,

Ao costume fiel, dará o nome seu?

 

É o beijo das mães, entre nós... o batismo,

Esse amoroso olhar que nos embala então!

Nós não temos por dogma a fé do barbarismo

E nem numes fatais de sangue e de opressão.

 

Batizamo-lo em ti, ó liberdade santa,

Alma dos bravos desce — eis um berço infantil.

O teu signo de luz, tua altivez lhe implanta,

Os velhos bendirão a tua mão viril!

 

Espírito de luz — eia, marchar — avante!

Nossos ossos em pó reflorirão por dom!

Mas conservai a fé, e o futuro radiante,

Lutar é um dever — lembra-te, Charles Frond!

 

 

 

A S. M. I. [86]

 

César! Fulge mais luz nas saudações do povo,

Há nos hinos plebeus — mais alma nacional

Quando a mão do Senhor ergue, dum germe novo,

A virtude e o saber em fronte imperial.

 

Aqui, se o vê curvado ao sol da majestade,

Não é que o ceguem mais os velhos ouropéis;

É que fulge a realeza em céu de liberdade

E abraça a liberdade — a tradição dos reis.

 

Tu, que voltas do mar aos cânticos do Norte,

Tu que vens embalado aos hinos do país,

Podes e deves crer no público transporte

Como dias de luz que o povo te prediz;

 

A ti, que tens por norma a história do passado,

Como através do tempo — a inspiração de Deus,

E que sabes de fé que um Cáucaso elevado

Nem sempre é neste mundo o fim dos Prometeus.

 

Bem-vindo! Diz-te o povo e a frase poderosa

É como que fervente e tríplice ovação.

Ouve-a tu, que possuis um anjo por esposa,

Por mãe a liberdade e um povo por irmão!

 

 

 

AO CARNAVAL DE 1860 [87]

 

Morreste, seriedade!

Momo, o deus das zombarias,

Usurpou-te, por três dias,

Teu esplêndido bastão!

De um exílio temporário

Toma a longa e nova rota;

Agora reina a chacota

E o carnaval folgazão!

 

Diante das aras da rubra folia,

Cabeça a mais séria não vale um real;

Doidice, festança e alegria,

Tudo isto é fortuna que traz — carnaval.

 

Homem sério e bem formado,

Neste dia é contrabando;

Respeitado e venerando

É coisa que não se diz;

A razão abrindo os lábios,

Onde tem berço o juízo,

Vestiu um chapéu de guizo,

E pôs um falso nariz!

 

Nem pai de família, nem velho empregado,

Doutor, diplomata, caixeiro ou patrão,

Ninguém, ó loucura, no dia aprazado,

Não pode negar-te seu grande quinhão.

 

Tudo a loucura nivela,

Nem há luta de inimigos:

Esqueçam-se ódios antigos

De algum ferrenho eleitor;

Há tréguas por três dias

No campo dos candidatos,

Que o feijão ferve nos pratos

E os guizos falem melhor.

 

Esqueça-se tudo, são todos convivas,

Os ódios se apaguem no abraço comum:

Que doce batalha! Que lutas festivas!

Daqui deste campo não foge nem um!

 

Todas as belas amáveis

Podem ter parte na festa:

Sacerdotisas e Vesta,

Acendei os corações!

Pra sustentar a empresa

Não tendes armas faceiras?

É não tirar as pulseiras

E conservar os balões.

 

Daí das janelas olhando curvadas.

Sem dar um só passo na luta venceis:

Ao fogo, que corre das vossas sacadas

Aquiles se curvam e algemam-se reis.

 

Os reis, conquanto pintados,

Sempre são reis por três dias;

E sabem as galhardias

Das vossas armas leais.

Nós somos a Roma Inerte

Com a invasão peregrina

Que os hunos de crinolina

São mais que os outros fatais.

 

 

 

NO ÁLBUM DA ARTISTA LUDOVINA MOUTINHO [88]

 

Cedo começas a buscar no espaço,

Gentil romeira, a estrela do porvir;

Deus que abençoa as lutas do talento

Há-de ao esforço teu o espaço abrir.

 

Para alcançar o astro peregrino

O teu talento um largo rumo tem:

De tua mãe os vôos acompanha,

Que onde ela foi tu chegarás também.

 

 

 

GABRIELA DA CUNHA [89]

 

Enfim! Sobre esta cena, a tua e nossa glória,

Onde a musa eloqüente e severa da história

Toma-te a mão, e te abre à fascinada vista

O campo do futuro, ó grande e nobre artista,

Vejo-te enfim! Ermo, calado e nu,

Esperava a madona e a madona eras tu.

Mercê do mar sereno e do lenho veloz,

A mesma, a mesma sempre, eis-te enfim entre nós!

Eras daqui. Que importa uma ausência? O teu nome

A ausência não descora, o ouvido não consome,

Da lembrança e da luz que ficaram de ti,

Andasses longe, embora, ele vivia aqui.

O que é o mar? Barreira inútil. A lembrança

Tem asas e a transpõe. E depois a esperança

De ver no mesmo céu a mesma estrela dantes

Punha no ânimo a paz. Aos louros verdejantes

De que ornavas a fronte outros inda juntaste.

Bem-vinda sejas tu, tu que por fim voltaste

No brilho e no vigor dos teus dias melhores

Luzente de mais luz, c’roada de mais flores

E que vens, assentando outras datas gloriosas,

Dar ao palco viúvo a melhor das esposas.

 

 

 

ESTÂNCIAS NUPCIAIS [90]

 

dedicadas a D. Isabel e

ao Conde d’Eu

 

I

 

Que riso este o ar encerra?

Que canto? Que troféu?

Que diz o céu à terra?

Que diz a terra ao céu?

 

II

 

Do seio das florestas

Que aroma sobe ao ar?

E que oblações são estas

Que a terra envia ao mar?

 

III

 

A peregrina Alteza,

A rosa matinal,

O sonho de pureza

Da mente imperial.

 

IV

 

É noiva. A mão de esposa

Ao feliz noivo dá;

Era de amor ditosa

Esta hora lhe abrirá.

 

V

 

Almas de luz unidas

Na pura candidez

O amor, — de duas vidas

Uma só vida fez.

 

VI

 

E a filha predileta

Do paternal amor,

A doce, excelsa neta

Do excelso Fundador,

 

VII

 

Aumenta a nossa glória

No sólio imperial,

E a fúlgida memória

Da honra nacional.

 

 

 

EM HOMENAGEM A D. ISABEL E AO CONDE D’EU [91]

 

Do seio da espessura,

Ó virgem do Brasil,

Ergue radiante e pura

A fronte juvenil.

 

Tece com as mãos formosas

À noiva imperial

De lírios e de rosas

A c’roa nupcial.

 

Flor desta jovem terra,

Em seu profundo amor,

Como um penhor encerra

Cândida, excelsa flor.

 

Vivo, fulgente emblema

Das glórias do porvir,

Que o régio diadema

Um dia hás de cingir;

 

Salve! Os destinos novos,

Novos, futuros bens,

Querida destes povos,

Em tuas mãos os tens.

 

Num juramento unidas

Ante o sagrado altar,

As almas, como as vidas,

O céu veio aliar.

 

É vínculo precioso

Que o prende agora a si.

Esposa, eis teu esposo;

Alegra-te e sorri.

 

Abram-se à nova história

As páginas leais,

Onde se escreve a glória

Da pátria e dos teus pais,

 

E a mão que não consome

Memórias tão louçãs,

De dois fez um só nome:

Bragança e Orleans.

 

 

 

NO CASAMENTO DA PRINCESA ISABEL [92]

 

Cubram embora as últimas montanhas

       Nuvens de tempestade;

E vergue um dia os ânimos do povo

       Dura calamidade;

 

Cobre de há muito o teu domínio estreito;

Tu mesmo abriste as portas do Oriente;

Rompe a luz; foge ao dia! O Deus dos justos

Os soluços ouviu dos teus escravos,

E os olhos te cegou para perder-te!

 

O povo um dia cobrirá de flores,

A imagem do Brasil. A liberdade

Unirá como um elo estes dois povos.

A mão, que a audácia castigou de ingratos,

Apertará somente a mão de amigos.

E a túnica farpada do tirano,

Que inda os quebrados ânimos assusta,

Será, aos olhos da nação remida,

A severa lição de extintos tempos!

 

 

 

CALA-TE, AMOR DE MÃE [93]

 

Cala-te, amor de mãe! Quando o inimigo

Pisa da nossa terra o chão sagrado.

Amor de pátria, vivido, elevado,

Só tu na solidão serás comigo!

 

O dever é maior do que o perigo;

Pede-te a pátria, cidadão honrado;

Vai, meu filho, e nas lides do soldado

Minha lembrança viverá contigo!

 

É o sétimo, o último. Minh’alma repartida,

Vai toda aí, convosco repartida,

E eu dou-a de olhos secos, fria e calma.

 

Oh! não te assuste o horror da márcia lida;

Colhe no vasto campo a melhor palma;

Ou morte honrada ou gloriosa vida.

 

 

 

TRISTEZA [94]

 

Ah! Pobre criança!

Triste ludíbrio de funesta estrela!

 

SHAKESPEARE — Otelo

 

És triste. Que mal te oprime?

Que sombrio pensamento,

Como nuvem procelosa,

Ponto negro no horizonte,

Vem pousar, mulher formosa,

Em tua formosa fronte?

 

És triste. E pálida. As cores,

De vivas que eram outrora,

Como pétalas das flores

Que o tempo amareleceu,

Ora vejo-as apagadas...

E ao teu olhar peregrino

Fecham pálpebras cansadas

À luz que tinhas do céu,

 

A ausência de brilho e cores

E essa mórbida magreza,

Esse teu ar de abatida,

Com que, se perdes em vida,

Vens a ganhar em beleza,

Que são? Remorso de um crime

De certo não é? Responde,

Dize, que mágoa te oprime?

 

Teu silêncio obstinado

Tudo me explica.., já sei..

Mísero anjo infortunado,

Li tu’alma e adivinhei

 

Guardavas ao que primeiro

Tocasse a flor dos teus anos,

Não esse amor passageiro,

Das almas vãs, mas o amor

Profundo, intenso, exclusivo,

O amor que sonha e não dorme,

O amor sincero, o amor vivo,

Os transportes, a ternura,

De um coração palpitante,

Os desejos de ventura,

Ambiciosa fantasia,

As ânsias d’alma abundante,

Em suma — a felicidade:

Tal foi o sonho primeiro

Da tua primeira idade.

 

Em vez de uma alma irmã

Que a tua alma compreendesse,

Que achaste? Boçal figura,

Matéria, máquina, prosa,

Toda cegueira e espessura,

Corpo sem alma e sem vida,

E a esperança radiosa

Da vida que procuravas,

A ternura que guardavas,

Em teus chorados quinze anos.

Tudo arrefeceu, criança,

Ante os frios desenganos.

Entre a presente agonia

E o tempo em que, solta, aérea,

Tua ardente fantasia

A vida mágica e etérea

 

Evocava e embelecia,

Que tempo vai! Longo espaço

De solidão, de tristeza,

De ternura e de cansaço.

Uma quase eternidade

A contar na mente acesa:

Esperanças da incerteza,

Certezas da realidade!

 

Enfim, à morte completa

Da ilusão que alimentavas,

Olhaste pálida e inquieta

Para o futuro... e não viste

Nada do que procuravas

E nada do que pediste,

Olhaste ainda — e confusa

Viste o amor, a paz alheia,

Os que logravam sentir,

E tu, mísera reclusa,

Da prisão em que te achaste

Nem já te é dado fugir!

 

E agora, fria, abatida,

Secas as rosas do rosto,

Olhos já sem luz, nem vida,

Depois de tanta provança,

Tua mente em vão procura

A derradeira esperança:

O frio da sepultura...

 

 

 

O PRIMEIRO BEIJO [95]

 

(G. BLEST GANA)

 

Lembranças daquela idade

De inocência e de candor,

Não turbeis a soledade

Das minhas noites de dor;

                Passai, passai,

Lembranças do que lá vai.

 

Minha prima era bonita...

Eu não sei por que razão

Ao recordá-la, palpita

Com violência o coração.

Pois se ela era tão bonita,

Tão gentil, tão sedutora,

Que agora mesmo, inda agora,

Uma como que ilusão

Dentro em meu peito se agita,

E até a fria razão

Me diz que era bem bonita.

 

Como eu, a prima contava

Quatorze anos, me parece;

Mas minha tia afirmava

Que eram só, — nem tal me esquece!

Treze os que a prima contava.

Fique-lhe à tia essa glória,

Que em minha vivaz memória

Jamais a prima envelhece,

E sempre está como estava,

Quando, segundo parece,

Já seus quatorze anos contava.

 

Quantas horas, quantas horas

Passei ditoso ao seu lado!

Quantas passamos auroras

Ambos correndo no prado,

Ligeiros como essas horas!

Seria amor? Não seria;

Nada sei; nada sabia;

Mas nesse extinto passado,

De conversas sedutoras,

Quando me achava a seu lado

Adormeciam-me as horas.

 

De como lhe eu dei um beijo

É curiosíssima história.

Desde esse ditoso ensejo

Inda conservo a memória

De como lhe eu dei um beijo.

Sós, ao bosque, um dia, qual

Aquele antigo casal

Cuja inocência é notória,

Fomos por mútuo desejo,

A ali começou a história

De como lhe eu dei um beijo.

 

Crescia formosa flor

Perto de uma ribanceira;

Contemplando-a com amor,

Diz ela desta maneira;

— Quem me dera aquela flor!

De um salto à flor me atirei;

Faltou-me o chão; resvalei.

Grita, atira-se ligeira

Levada pelo terror,

Chega ao pé da ribanceira...

E eu, eu não lhe trouxe a flor.

 

De ventura e de alegria

A coitadinha chorava;

Vida minha! repetia,

E em meus braços me apertava

Com infantil alegria.

De gelo e fogo me achei

Naquele transe. E não sei

Como aquilo se passava,

Mas um beijo nos unia,

E a coitadinha chorava

De ventura e de alegria.

 

Depois,.. revoltoso mar

É nossa pobre existência!

Fui obrigado a deixar

Aquela flor de inocência

Sozinha à beira do mar.

Ai! do mundo entre os enganos

Hei vivido muitos anos,

E apesar dessa experiência

Costumo ainda exclamar:

Ditada minha existência,

Ficaste à beira do mar!

 

Lembranças daquela idade

De inocência e de candor,

Alegrai a soledade

Das minhas noites de dor.

                Chegai, chegai,

Lembranças do que lá vai.

 

 

 

A. F. X. DE NOVAIS [96]

 

Já da terrena túnica despida,

Voaste, alma gentil, à eternidade;

       E, sacudindo à terra

As lembranças da vida, as mágoas fundas,

Foste ao sol repousar da etérea estância.

 

Nem lágrimas, nem preces

O despojo mortal do sono acordam;

Nem, reboando na mansão divina,

       A voz do homem perturba

O espírito imortal. Ah! se pudessem

Lágrimas de homens reviver a extinta

Murcha flor de teus dias: — se, rompendo

O misterioso invólucro da morte,

De novo entrasses no festim da vida,

Alma do céu, quem sabe se não deras

A taça cheia em troco do sepulcro,

E agitando no espaço as asas brancas

Voltarias sorrindo à eternidade?

 

Não te choramos pois; descansa ao menos

No regaço da morte: a austera virgem

Ama os que mais sofreram; tu compraste

C’o a dor profunda o derradeiro sono.

Choram-te as musas, sim! choram-te as musas

Choram-te em vão, — que das quebradas cordas

Da tua lira os sons não mais despertam;

       Nem dos festivos lábios

Os versos brotaram que outrora o povo

No entusiasmo férvido aplaudia.

       Apenas (e isso é tudo!)

       Fulge c’oa luz da glória

Teu nome. Os versos teus, garridas flores

De imortal primavera, enquanto o vento

Inúteis folhas pela terra espalha,

Celeste aroma à eternidade mandam.

 

       Tu viverás. Não morre

Aquele em cujo espírito escolhido

A mão de DEUS lançou a flama do estro

Traz do berço o destino. Em vão, fortuna,

Lhe comprimes a voz, a voz prorrompe.

       Tal o rochedo inútil

       Ousa deter as águas;

A corrente prossegue impetuosa.

O campo alaga e a terra mãe fecunda.

 

 

 

ONTEM, HOJE, AMANHÃ [97]

 

Ontem eu era criança

Que brincava nos delírios,

Entre murta, rosa e lírios,

No meio d’etéreos círios,

Nos brincos que a gente alcança;

Que sonho p’ra mim, que vida

Nas ânsias tão bem traída!

Que noites de tanta lida,

Nos gozos em que não cansa!

Hoje sou qual triste bardo

Cismando na virgem bela,

Nos meigos sorrisos dela;

Que, porém, já se desvela

Do futuro vir mui tardo!

— Pranteio na pobre lira,

Qual nauta que já suspira

Nas ânsias em que delira,

Nas chamas em qu’eu só ardo!

 

Amanhã serei no mundo

Perseguido em meu cansaço,

Sem já ter amigo braço

Que me ajude a dar um passo

Neste pego sem ter fundo;

Nem sequer a minh’amada

Se julgando mal fadada

Não virá mui namorada

Me mostrar um rir jucundo!

 

 

 

26 DE OUTUBRO [98]

 

Ventos do mar, que há pouco sussurrando

As vozes dele ouvíeis namorados,

Ventos de terra, agora consternados,

Levai a nova do óbito nefando.

 

Castigo foi à nossa pátria, quando

Dele esperava alentos renovados,

E sentia viver aos grandes brados

Daquele gênio raro e venerando.

 

Claro e vibrante espírito, caíste,

Não ao peso dos anos, mas ao peso

Do teu amor à nossa pátria amada.

 

E ela que fica desvairada e triste,

Chora lembrando o verbo teu aceso,

Filho de Andrada, e portentoso Andrada.

 

 

 

AS NÁUFRAGAS [99]

 

(Duas meninas cearenses que vinham no vapor Bahia.)

 

“Verdes mares bravios, verdes mares

Do Ceará” — que a musa de Iracema

Cantou um dia, e que na hora extrema

Certo entreviu nos últimos olhares,

 

Ó verdes mares, onde essas crianças

Aprenderam brincando a andar ao largo,

Rir do vosso estertor válido e amargo,

E as águas bravas converter em mansas,

 

Cantai agora, murmurai contentes

De saber que ambas, débeis e valentes,

Viram a morte e não tremeram dela,

 

Antes, cortando as ondas insofridas,

Salvaram, mais que as suas próprias vidas,

Outra que nunca pôde ser mais bela.

 

 

 

AO DR. XAVIER DA SILVEIRA [100]

 

Amigo, ao ler os versos saborosos

Que me mandou por vinte e um de junho,

Vi ainda uma vez o testemunho,

Dos seus bons sentimentos amistosos.

 

Há para os corações afetuosos

(Isto, que escrevo por meu próprio punho,

Não é força de rima, leva o cunho

Dos conceitos reais e valiosos),

 

Há para os corações, como eu dizia,

— Um perigo, a distância: — tal perigo

— Que as mais ardentes afeições esfria.

 

Inda bem que esse mal, por mais antigo

Que seja, não atinge, neste dia

Um verdadeiro coração de amigo.

 

 

 

13 DE MAIO [101]

 

Brasileiros, pesai a longa vida

Da nossa pátria, e a curta vida nossa;

Se há dor que possa remorder, que possa

Odiar uma campanha, ora vencida,

Longe essa dor e os ódios seus extremos;

Vede que aquele doloroso orvalho

De sangue nesta guerra não vertemos...

União, brasileiros! E entoemos

       O hino do trabalho.

 

 

 

SONETO [102]

 

(Pela inauguração do Asilo de Órfãos de Campinas)

 

Recolhei, recolhei essas coitadas,

Tristes crianças, desbotadas flores,

Que a morte despojou dos seus cultores

E pendem já das hastes maltratadas.

 

Trocai, trocai as fomes e os horrores,

Os desprezos e as ríspidas noitadas

Pelos afagos dos peitos protetores,

Ensinai-lhes a amar e a ser amadas.

 

E quando a obra que encetais agora

Avultar, prosperar, subir ao cume,

Tornada em sol esta ridente aurora,

 

Sentireis ao calor do grande lume

Tanta ventura, que, se fordes tristes,

Jubilareis da obra que cumpristes.

 

 

 

RICARDO [103]

 

Vive tu, meu menino, os belos anos

Junto dos teus, na doce companhia

Do que há de melhor em corações humanos,

E faze deste dia eterno dia.

 

 

 

VELHO TEMA [104]

 

Esta ave trouxe de alguém

       Algum recado

Talvez diga que aí vem

       Um namorado.

Um namorado que tem

       Do peito ao lado

Um coração que o sustém

       De apaixonado.

 

Se não acudir alguém

       Ao ansiado

É, porventura, um grã bem...

       Por um recado

Já vi morrer aquém e além,

       Por um recado...

 

 

 

POR ORA SOU PEQUENINA [105]

 

Por ora sou pequenina

Mas, quando eu também crescer

Há de vir uma menina

Dizer o que vou dizer.

 

Vou dizer, noivos amados,

Que é doce e consolador

Ver assim dois namorados

Coroando o seu amor.

 

Casar é lei preciosa;

Casai, amigos, casai.

Beija-flor com rosa

Mamãe casou com papai,

 

Por isso, a viva alegria

Que enche a todos nós

É ser grande dia

Muito maior para vós.

 

Eis aí fica o meu recado

Adeus. Se for para bem

Que eu veja o casal casado

Crescendo, caso também.

 

 

 

CÉSAR! FULGE MAIS LUZ [106]

 

César! Fulge mais luz nas saudades do povo.

Há nos hinos plebeus — mais alma nacional,

Quando a mão do Senhor ergue dum germe novo

A virtude e o saber em fronte imperial.

 

Aqui; se o vês curvado ao sol da majestade,

Não é que o ceguem mais os velhos europeis;

É que fulge a realeza em céu de liberdade,

E abraça a liberdade — a tradição dos réis.

 

Tu, que voltas do mar aos cânticos do Norte,

Tu, que vens embalado aos hinos do país,

Podes e deves crer no público transporte,

Como dias de luz que o povo te prediz;

 

A ti, que tens por norma a história do passado,

Como através do tempo — a inspiração de Deus!

E que sabes de fé que um Cáucaso elevado

Nem sempre é neste mundo o fim dos Prometeus.

 

Bem-vindo! diz-te o povo, e a frase poderosa

É como que fervente e tríplice ovação;

Ouve-a tu, que possuis um anjo por esposa,

Por mãe a liberdade e um povo por irmão!

 

1930

 

 

NÃO HÁ PENSAMENTO RARO [107]

 

Não há pensamento raro

Que aqui lhe diga

Melhor que o seu nome caro,

Gentil amiga.

 

 

 

VIVA O DIA 11 DE JUNHO [108]

 

 

Viva o dia onze de junho,

Dia grande, dia rico,

Batalha do Riachuelo,

Dia dos anos do Tico.

 

 

 

VOULEZ-VOUS DU FRANÇAIS? [109]

 

Voulez-vous du français, ou bien de notre langue?

Uma e outra lhe dou, Francisca, e não se zangue

Car pour dire d’un beau visage et son esprit,

Um nome basta — o seu — ce nom tout seu! suffit!

 

 

 



[1] Marmota Fluminense, 6 jan. 1855. “Das peças datadas pelo autor, esta é a de data mais remota. Até melhor aviso, estes versos devem ser considerados como primeiro trabalho literário produzido por Machado de Assis, embora a primazia de publicação caiba ao poema “Ela”, que vai transcrito a seguir.” (José Galante de Sousa)

 

[2] Marmota Fluminense, n.º 539, 12 jan. 1855.

 

[3] Marmota Fluminense, n.º 600, 15 jul. 1855.

 

[4] Marmota Fluminense, n.º 702, 1 abr. 1856.

 

[5] Marmota Fluminense, n.º 690, 4 mar. 1856.

 

[6] Marmota Fluminense, 12 abr. 1856.

 

[7] Marmota Fluminense, n.º 767, 2 set. 1856.

 

[8] Marmota, 8 jan. 1858.

 

[9] Marmota, 26 jan. 1858.

 

[10] Marmota, 12 jan. 1858.

 

[11] Marmota, 23 mar. 1858.

 

[12] Marmota, 24 abr. 1858.

 

[13] Manuscrito pertencente à Biblioteca Nacional.

 

[14] Correio Mercantil, 28 mar. 1859.

 

[15] O Binóculo, s.d. [n.º 1, 23 set. 1862.]

 

[16] Gazeta de Notícias, 18 abr. 1895.

 

[17] Correio Mercantil, 9 jan. 1860.

 

[18] Publicado na Biblioteca Brasileira, I Lírica Nacional. RJ, 1862, pp. 53-54.

 

[19] O Futuro, 1 jan. 1863.

 

[20] Publicado anonimamente na Semana Ilustrada, 29 mar. 1863.

 

[21] Publicado anonimamente, por ocasião da questão anglo-brasileira. Identificado por J. Galante de Sousa, foi incluído em Poesia e Prosa.

 

[22] Diário do Rio de Janeiro, 17 mai. 1865.

 

[23] Jornal do Comércio, 26 fev. 1870. Segundo J. Galante de Sousa, "A poesia consta de cinco oitavas. Foi recitada pela atriz Ismênia no Teatro São Luiz a 23/2/1970".

 

[24] A Reforma, 20 mai. 1870.

 

[25] Leitura Popular, n.º 1, set. 1871.

 

[26] O Binóculo, n.º 47, 22 fev. 1879.

 

[27] Manuscrito pertencente ao Arquivo Nacional.

 

[28] A Estação, 15 jul. 1879.

 

[29] Gazeta de Notícias, 23 dez. 1877, em homenagem a José de Alencar.

 

[30] Publicado como Poliantéia Comemorativa da Inauguração das Aulas para o Sexo Feminino do Imperial Liceu de Artes e Ofícios. Rio de Janeiro, 1881.

 

[31] A Estação, 15 jan. 1885.

 

[32] Publicado em O Marquês de Pombal, 2ª parte, pp. 21-30. Lisboa, 1855.

 

[33] Gazeta de Notícias, 1 set. 1890.

 

[34] Revista da Academia Brasileira de Letras, dez. 1932.

 

[35] Publicado em Outras Relíquias. RJ, H. Garnier, 1910.

 

[36] A Semana, 14 abr. 1894.

 

[37] Publicado em Relíquias de Casa Velha, Rio de Janeiro: Garnier, 1906.

 

[38] A Ordem, jun. 1939.

 

[39] Publicado dentro de um artigo de Artur Azevedo, em O País., 2-10-1908.

 

[40] Foi encontrado apenas o registro da data de divulgação do poema, 1854.

 

[41]  Marmota Fluminense, 20 mar. 1855.

 

[42]  Marmota Fluminense, 18 mai. 1855.

 

[43]  Marmota Fluminense, 24 jul. 1855.

 

[44]  Marmota Fluminense, 10 ago. 1855.

 

[45]  Marmota Fluminense, 14 ago. 1855.

 

[46]  Marmota Fluminense, 05 out. 1855.

 

[47]  Marmota Fluminense, 09 out. 1855.

 

[48]  Marmota Fluminense, 21 out. 1855.

 

[49]  Marmota Fluminense, 28 out. 1855.

 

[50]  Marmota Fluminense, 02 nov. 1855.

 

[51]  Marmota Fluminense, 23 nov. 1855.

 

[52]  Marmota Fluminense, 02 dez. 1855.

 

[53] Foi encontrado apenas o registro da data de divulgação do poema, 1856.

 

[54] Foi encontrado apenas o registro da data de divulgação do poema, 1856.

 

[55]  Marmota Fluminense, 21 fev. 1856.

 

[56]  Marmota Fluminense, 22 mar. 1856.

 

[57]  Marmota Fluminense, 01 mai. 1855.

 

[58] Foi encontrado apenas o registro da data de divulgação do poema, 1856.

 

[59]  Marmota Fluminense, 15 set. 1857.

 

[60]  Marmota Fluminense, 02 out. 1857.

 

[61]  Marmota Fluminense, 22 out. 1857.

 

[62]  Marmota Fluminense, 22 dez. 1857.

 

[63]  Marmota Fluminense, 25 dez.. 1857.

 

[64]  Marmota Fluminense, 16 fev. 1858.

 

[65]  O Paraíba, Petrópolis, 11 abr. 1858.

 

[66]  Correio Mercantil, 25 out. 1858.

 

[67] Foi encontrado apenas o registro da data de divulgação do poema, 1858.

 

[68]  Correio Mercantil, 30 nov. 1858.

 

[69]  Correio Mercantil,  10 fev. 1859.

 

[70]  O Paraíba, Petrópolis, 17 fev. 1859.

 

[71]  Correio Mercantil, 14 fev. 1859.

 

[72]  Correio Mercantil, 04 mai. 1859.

 

[73]  O Paraíba, Petrópolis, 22 mai. 1859.

 

[74] O Paraíba, Petrópolis, 12 jun. 1859.

 

[75]  Correio Mercantil, 21 jul. 1859.

 

[76]  Correio Mercantil, 21 out. 1859.

 

[77]  O Espelho, 04 set. 1859.

 

[78]  O Espelho, 18 set. 1859.

 

[79] O Espelho, 23 out. 1859.

 

[80] Foi encontrado apenas o registro da data de divulgação do poema, 1859.

 

[81] O Espelho, 18 dez. 1859.

 

[82] O Espelho, 25 dez. 1859.

 

[83] Foi encontrado apenas o registro da data de divulgação do poema, 1859.

 

[84] Correio Mercantil, 16 nov. 1859.

 

[85] Foi encontrado apenas o registro da data de divulgação do poema, 1859.

 

[86] Marmota Fluminense, 02 dez. 1855.

 

[87] Foi encontrado apenas o registro da data de divulgação do poema, 1860.

 

[88] A Primavera, 17 mar. 1861.

 

[89] O Espelho, 25 dez. 1859.

 

[90] Foi encontrado apenas o registro da data de divulgação do poema, 1864.

 

[91] Foi encontrado apenas o registro da data de divulgação do poema, 1864.

 

[92] Foi encontrado apenas o registro da data de divulgação do poema, 1865.

 

[93] Foi encontrado apenas o registro da data de divulgação do poema, 1865.

 

[94] Jornal das Famílias, ago. 1866.

 

[95] Semana Ilustrada, 19 set. 1869.

 

[96] Semana Ilustrada, 29 ago. 1869.

 

[97] A Luz, 1872.

 

[98] Gazeta de Notícias, 24 out. 1886.

 

[99] Gazeta de Notícias, 17 abr. 1887.

 

[100] Foi encontrado apenas o registro da data de divulgação do poema,1887.

 

[101] Foi encontrado apenas o registro da data de divulgação do poema,1888.

 

[102] Foi encontrado apenas o registro da data de divulgação do poema,1890.

 

[103] Foi encontrado apenas o registro da data de divulgação do poema, 1893.

 

[104] Foi encontrado apenas o registro da data de divulgação do poema, 1911.

 

[105] Publicado no artigo “Migalhas inéditas”, de Tristão de Athayde, em Autores e e, em tigo "e Campinas.Livros, 28 set. 1941.

 

[106] Gazeta de Notícias, 08 set. 1888. Na Bibliografia de Machado de Assis, de Galante de Sousa, este poema traz o título de “César! Fulge mais luz nas saudações do povo”.

 

[107] Ilustração Brasileira, jun. 1939.

 

[108] Jornal do Comércio, jun. 1939.

 

[109] Jornal do Comércio, 21 jun. 1939.